As Encantadoras – (Wonders)
Elena
Medel
Traduzido
do Espanhol por Lizzie Davis e Thomas Bunstead
A Maria tem sono pesado. Quando
se reformou, colocou o despertador num saco plástico e deixou-o na associação
na prateleira dos artigos de segunda mão, caso alguém necessitasse de um.
Durante anos não o usou, em vez disso, como toda a gente, substituiu-o pelo
alarme do seu telemóvel – mas o gesto pareceu simbólico, como se fosse a
história de outra pessoa, pensou, porque é que não seria útil a alguém que
precisasse, um objeto noutra história cuja protagonista saísse de casa de
madrugada?
De qualquer modo, ela quase
sempre acorda sem ajuda, agitada quando os raios de sol se infiltram nos
estores, ou quando alguém do apartamento ao lado começa no o seu duche matinal.
Todos estes acontecimentos prepararam-na para este dia. A noite passada ao
terminar a sessão no WhatsApp, a Laura escreveu o seguinte, “não acredito que
está realmente a acontecer. Nas assembleias, nos encontros concelhios, a Maria
está sempre a tentar evitar que as raparigas mais novas fiquem demasiado
animadas, mas agora é ela que está animada, também”.
A minha vida inteira, os quase
setenta anos que já vivi, conduziram-me, ao acordar esta manhã, a estar aqui na
vossa reunião, a caminhar ao vosso lado. Elas foram instruídas na associação a
dizer “faz o que quiseres, uma greve ao trabalho pago, uma greve como
consumidora, uma greve aos cuidados médicos. Escolhe o que for melhor para ti,
porque para nós está tudo bem, não estamos aqui para distribuir crachás à
melhor feminista”.
O meu marido vai notar se eu não
tiver a comida pronta para ele. Por isso, Amália, põe a sopa num Tupperware e
diz-lhe que ele mesmo a pode aquecer. Será que ele consegue fazer isso? Dá-lhe
uma aula para principiantes de como usar o micro-ondas, na próxima semana. Eu
tenho de trabalhar, não me posso dar ao luxo de não ser remunerada, mas não se
preocupem, encontro-me convosco mais tarde na Atocha. Será que cuidar de ti
própria conta? Estou a pensar tomar um banho de imersão antes de sair de casa
pela manhã, até ficar com a minha pele enrugada como se fosse uma ameixa seca.
Com certeza, porque não? Hoje
trata-se de cuidar de nós próprias e das nossas irmãs. Na véspera, à tarde,
várias delas tinham-se encontrado na associação: algumas, atarefadas, faziam
sandes para aquelas que fossem para as ruas espalhar a mensagem, às mulheres
que saiam das mercearias, e às que tinham ido para o trabalho; outras optaram
por não fazer greve, mas apareceram bem cedo na sede para discutirem os acontecimentos
nas diferentes cidades e aqui na sua cidade.
Será que ouvir rádio conta como
fazer greve? Ver online o que está a acontecer? Elas destaparam uma bandeja
embrulhada em papel de alumínio e passaram às outras fatias de pão-de-ló.
Tinham frito empanadas, e as raparigas prepararam húmus e guacamole,
uma das mais velhas mergulhou uma colher na panela de barro como se fosse sopa
ou leite creme para deleite das raparigas. Não é assim que se come húmus.
Parecia demasiado moderno para ela, e lembrou-se da sua mãe que tinha vivido
durante a guerra, e nunca iria desperdiçar ingredientes naquele líquido; de
onde é que pensa que és, do Nilo ou do Carabanchel, porque aqui no Carabanchel
nós colocamos grão-de-bico no guisado.
Enquanto elas faziam as sandes de
chouriço e salame, cortando-as em triângulos, embrulhando-as em plástico e
empilhando-as no frigorifico, para serem distribuídas no dia seguinte, a Maria
fazia uma lista de todos as marchas de protesto e greves em que não tinha
participado: aquelas contra o Suárez, nos anos setenta, antes e depois; aquela contra
a Nato; aquela a favor das pensões em 1985, a greve de 88 e as duas nos anos
noventa, aquelas pelo Iraque e pelo Não à Guerra; aquela em 2010, as duas em
2012 – a marcha de protesto aqui contra o Rajoy, e aquela sobre a Europa – o
comboio da liberdade, e aquela a favor da escolha. As manifestações, recorda
uma das raparigas, já em idade universitária, “você esteve lá na manifestação Verde
- a favor do Aborto”, afirma, e a Maria torna a contar como numa das
manifestações, um repórter perguntou-lhe se ela estava a protestar em nome da
sua neta, e ela, sem saber o que responder, disse que sim, que estava, em nome
da sua neta e das netas das suas amigas, e as raparigas no grupo das mais novas
na associação, acenavam para a camera sem lhe dizer (era segredo) que não eram
relacionadas com ela.
A Maria, de forma convincente,
menciona o primeiro e último nome dos homens que constituíram a sua biografia: Felipe,
Boyer, Aznar – que nunca iriam conhecer algo sobre a mulher de setenta anos que
tinha trocado um bairro semiconstruído numa cidade do sul de Espanha por um
bairro social em Carabanchel, Madrid. Um dos ministros de Zapatero concedeu um
prémio à associação, mas a Maria nunca o foi receber. Entregaram-no durante a
manhã, mas como ela estava a trabalhar não pode ir.
“Então, Maria, já tinha visto
muitas mulheres anteriormente nas reuniões?” Uma das raparigas, praticamente
uma adolescente, colocou a questão de uma forma inocente, um fio de gordura de
chouriço escorria pelo seu pulso abaixo até à ponta dos dedos; as suas mãos, calejadas,
resultado do trabalho doméstico desde a infância, sempre sobressaíram aos olhos
da Maria, que as via como um sinal de que iria acabar por usá-las mais do que a
cabeça. Apesar da sua juventude, as coisas que a rapariga dizia espantava a
Maria – a filha da filha de uma amiga, dizia para si mesma com uma sensação
estranha de orgulho – ela exprimia as suas opiniões categoricamente, conseguia
criar empatia com pontos de vista de outras pessoas, e, ao mesmo tempo, havia
algo de reconfortante, para a Maria na afirmação, que confirmava o facto da
rapariga ser inexperiente.
Não acredito que os homens não te
deixassem falar. Costumava ir com os tipos da associação do bairro, a Maria
explicou. Comecei a namorar com um deles cinco ou seis anos após me ter mudado
para Madrid. Eu ia a essas reuniões para fazer do bairro um sítio melhor para
se viver. Era uma zona perigosa, nessa altura, mais do que é hoje, toxicodependentes
aos tiros em plena luz do dia, mesmo à entrada do meu prédio, e eles não se
ficavam apenas pelos roubos por esticão, e, na altura, ainda havia zonas
completamente degradadas, e mais distantes, as prisões. Todos tínhamos a
sensação de que na margem sul do rio havia terrenos baldios cheios de nada e de
ninguém. Claro que, nada e ninguém se referiam a nós.
Comecei a refletir sobre o que
diziam nas reuniões, e comecei a tirar notas sobre alguns dos nomes dos
escritores de quem eles falavam, eles e outros homens que eu não conhecia bem,
nas reuniões e nos bares onde nos reuníamos a seguir. Costumava saltar de um
escritor para outro e depois partilhava quaisquer que fossem as conclusões a
que chegava com o mesmo homem de sempre, o meu companheiro – Pedro, era esse o
seu nome – e costumávamos discuti-las. Ele costumava lançá-las à discussão na
reunião seguinte, e todos eles ficavam extasiados com a sua pretensa inteligência,
como se fosse um professor universitário. Mantinha-me em silêncio, porque ele fazia
crer que as suas ideias eram melhores que as minhas.
Comecei a me reunir com algumas
mulheres, a tua avó, algumas outras amigas, nas suas casas, e em minha casa também,
e era aí que nós costumávamos falar de temas que nos diziam mais respeito,
coisas que os homens não tinham interesse: o divórcio, o aborto, a violência,
não apenas a física, mas a psicológica também. A tua mãe começou a me sugerir
livros que estudou durante a licenciatura, e eu continuei lendo e aprendendo, e
comecei a me aperceber que quanto mais pensava por mim, mais o Pedro se sentia
desconfortável. Por isso, nós, eu e a tua mãe, conversámos; conversávamos muito
como sempre o fizemos, e, então, decidimos pedir à associação se podíamos criar
um grupo de mulheres. Nas suas mentes seria apenas para trocarmos ideias sobre
roupas e receitas. Bem, a tua mãe e algumas das suas amigas universitárias
mudaram-se para cá e começámos a causar embaraços. A Câmara Municipal arranjou
um sítio para nos reunirmos, mas depois voltou atrás quando nos queixámos da
falta de luz no parque. Com algum dinheiro amealhado por todas nós, alugámos o
nosso próprio espaço. Nessa altura, eu trabalhava o máximo de horas possível,
limpando escritórios nos Nuevos Ministérios; quando acabava, comia
qualquer coisa, uma sandes no metro, ou qualquer coisa que fosse rápida de
fazerem casa, e nem tinha tempo de me sentar um pouco, e em algumas noites eu saía
para me encontrar com o Pedro apenas por uns instantes, não acho que tenha sido
tão feliz como nessa altura. Nem mesmo agora que vou descansar, quando passo o
dia todo na associação e vos vejo a todas a se ajudarem mutuamente. Foi a
primeira vez na vida que senti que as pessoas me ouviam quando falava, que
respeitavam o que eu dizia, e não porque me queriam levar para a cama, ou
porque deixavam de prestar atenção a algo que eu abordava e que não lhes dizia
nada, mas sim porque me compreendiam, que concordavam comigo, e pensavam que o
que eu dizia era algo que valia a pena ouvirem. Houve um momento, quando tudo
isso, ao pensar em algo e ao verbaliza-lo, ao fazer as coisas que eu dizia que
faria, a associação parecia-me muito mais importante do que qualquer outra coisa
que o Pedro pudesse alguma vez me oferecer. Ele queria que fossemos viver
juntos, mas apercebi-me que nada disso tinha a ver com amor. Eu não era uma
pessoa – Maria – mas algo – algo que ele sentia que lhe pertencia – o seu
apartamento, o seu carro, a sua mulher.
Esta cicatriz - e ela aponta para
o seu queixo, um arranhão que sobressai da sua pele branca – fiz isto quando,
uma vez, saía do autocarro à pressa, tropecei e caí e ele não fez absolutamente
nada, não se preocupou minimamente comigo. Estivemos juntos um ano, depois
disso.
Por essa razão, não: quero dizer,
nunca houve mulheres como nós. O que é que quer dizer com isso, Maria? Mulheres
pobres. Até para protestarmos, precisamos de dinheiro.
Traduzido por Ivo Eduardo Correia de Granta
Magazine
Este é um projeto de tempos livres. Sou um
leigo nas lides da tradução, não tenho experiência nem Licenciatura nesta área.
Gosto de desafios e de melhorar os meus conhecimentos linguísticos e
literários. Sejam compreensivos!