sábado, 23 de julho de 2022

 

A literatura de viagens acabou?

Morwari Zafar

Traduzido por Ivo Eduardo Correia

  O que os satélites e a Internet não fazem é dar uma voz à experiência. E é aí que a literatura de viagens faz a diferença.”

   A questão sobre o fim da literatura de viagens perseguiu-me durante semanas. Viajei muito, escrevi muito, mas o que significa escrever sobre viagens?

   O género, como me apercebi nas minhas cogitações, sofreu uma mudança palpável, mas continua relevante. A sua definição alargou-se num mundo onde o conhecimento e a experiência são instantâneos. Conseguimos procurar no Google o nosso caminho para os confins do globo – a nossa visão é superada pela profundidade ótica dos satélites a milhares de quilómetros de distância. Eles ajudam-nos a explorar todas as características topográficas da Mongólia ou ver ao vivo uma estrada em Union City, Califórnia. Mas o que os satélites e a Internet não fazem é dar uma voz à experiência. E é aí que a literatura de viagens faz a diferença. É uma selfie literária, uma reflexão marcada pelo tempo de uma experiência que vai para além da foto de uma pessoa, de um sorriso encenado ou de um estômago contraído. O género continua a ser produzido e consumido devido a um desejo humano intrínseco – a necessidade de se conectar e de ser compreendido.

  Pode-se argumentar que toda a escrita se encaixa no género da literatura de viagens. Mas a literatura de viagens compromete o autor e o leitor a uma certa intimidade que outros géneros não atingem. Porquê? Porque a literatura de viagens é epistolar por natureza. A literatura de viagens utiliza a viagem e o destino como referentes para comunicar algo maior – a nossa própria evolução do pensamento e pessoa à medida que damos importância a novos ambientes e às pessoas que encontramos ao longo do caminho.

  Talvez o aspeto mais relevante da literatura de viagens é que acontece, naturalmente, quando estamos longe. É um produto da distância. O meu primeiro texto de literatura de viagens foi uma carta aos meus pais quando estava na escola primária. Tinha à volta de onze anos e estava a escrever desde uma zona rural do Surrey, Inglaterra, onde os meus colegas de turma e eu estávamos em visita de estudo. Depois de desejar aos meus pais um feliz Nowruz (ano novo no Afeganistão) na língua Farsi e traduzido para Inglês:

  A viagem foi excelente, e chegámos em segurança. Os dormitórios são muito bons. Durmo no beliche de cima. Temos comida suficiente e sinto-me muito bem. Tenho imensas saudades vossas. Fizemos orientação e visitamos um campo de saibro.

 Nessa altura, já estava longe de um lar (Afeganistão) e me habituando a estar longe dos meus pais pela primeira vez. Cerca de duas décadas depois do meu relato impressionante de um dia de acampamento, mantinha um blogue de viagens. Começou quando vivi em Buenos Aires durante seis semanas por um capricho, e posteriormente, usei-o para partilhar outras experiências – explorando tecido cicatricial em Roma, encontrando a fé no Colorado e descobrindo belezas inigualáveis no Rio de Janeiro. Cada entrada do blogue tinha se iniciado como um email a um amigo; reflexões pessoais ao longo do dia que ondulavam de volta a casa ao encontro de aqueles que me eram mais queridos, e talvez aos estranhos que não conhecia, mas que tinha a esperança de vir a conhecer através da escrita. Reflexões de viagens que povoavam o vazio marcado pela ausência de casa com palavras e relevância. Que ligação pode sobrar entre seres sensíveis num mundo à parte sem qualquer forma de correspondência?

  A literatura é, assim, um meio intemporal, perpetuado pelo desejo de encontrar o mundo muito perto ou a grande distância dos nossos olhos. Ler e escrever sobre viagens é sobre como tocar a nossa própria alma na alma de alguém, um ato de reconhecimento catártico, que, simplesmente, elas existem. Nesse processo, conhecemos a nós mesmos, e, ao partilhá-lo, passamos a ser compreendidos. E assim, escrevo na esperança de, como uma imagem, as palavras deixem uma impressão indelével onde estamos mais vivos e ligados – na nossa imaginação.

 

quinta-feira, 21 de julho de 2022

 


 

Tomb of Sand é um romance em hindi de 2018 do autor indiano Geetanjali Shree. Foi traduzido para o inglês pela tradutora norte-americana Daisy Rockwell. Em 2022, o livro se tornou o primeiro romance traduzido de uma língua indiana a ganhar o International Booker Prize.

 

 

Túmulo de Areia (Tomb of Sand)

Traduzido por Ivo Eduardo Correia

1

  Um conto conta a si próprio. Pode ser completo, mas também pode ser incompleto, da forma como todos os contos são. Este conto particular tem uma fronteira e mulheres que vêm e vão como bem lhes apetece. Desde o momento em que existem mulheres e uma fronteira a história consegue se escrever a si própria. Até as mulheres que estão sós são suficientes. As mulheres são histórias em si, cheias de agitações e sussurros que flutuam ao vento e que se dobram a cada folha de erva. O sol poente reúne fragmentos de contos e transforma-os em lanternas brilhantes que ficam suspensas nas nuvens. Estas também farão parte da nossa história. O trajeto da história desenrola-se sem saber onde irá parar, virando ora para a direita, ora para a esquerda, às voltas e reviravoltas permitindo que tudo e alguma coisa se juntem à narração. Irá emergir de dentro de um vulcão, inchando silenciosamente enquanto o passado ferve no presente, trazendo vapor, cinzas, e fumo.

  Existem duas mulheres nesta história. Além delas, existem outras que apareciam e desapareciam, aquelas que continuavam a vir e a ir, aquelas que permaneciam sempre, mas que que não eram tão importantes, e aquelas que ainda não foram mencionadas, que não eram sequer mulheres. Por agora, digamos apenas que duas mulheres eram importantes, e destas uma estava a ficar mais pequena e a outra maior.

  Havia duas mulheres e uma morte.

  Duas mulheres, e uma morte. Quão bem iremos nos dar, nós e elas, já que todas nos sentamos juntas.

  Duas mulheres: uma mãe, uma filha, uma, crescendo para baixo e a outra, para cima. Uma ri e diz, estou a ficar mais pequena a cada dia que passa! A outra está triste, mas não diz nada quando se vê ficando maior. A mãe deixou de usar saris (traje típico da mulher indiana), agora que ela tem de enfiar mais de metade do tecido na cintura e levantar as bainhas das anáguas um pouco mais para cima a cada dia que passa. Será que se ficarmos cada vez mais pequenas, far-nos-á parecer um gato, para que possamos escorregar pelas pequenas rachas e escapar? Fazer um pequeno furo numa fronteira, e esgueirar-se através dela? Desenvolver um talento para a quase invisibilidade?

  Esta deve ser a razão pela qual a mãe conseguiu se esgueirar para o outro lado da fronteira, enquanto a filha ainda estava preocupada com o quão presas elas estavam. É possível que a mulher mais pequena estivesse realmente inocente quando se recusou a confessar qualquer crime da sua autoria, seja em relação a autorizações legais, a discussões sobre nomes, seja a acusações de furto.

  Aqueles que não compreendiam as suas razões, achavam-na maluca, talvez mesmo perversa. Suspeitavam que fosse enganadora, de propósito.

  Ela referiu que os homens comem o melhor e deixam os restos para as mulheres, não é verdade? Hmm? Falou sem medo? Então? Tem de ser sempre assim?

  Mas se olharmos os guardas fronteiriços olhos nos olhos, será que eles compreenderão? Atravessámos a fronteira e eles repreendem-nos.

  Ela ri-se em voz alta. Qualquer coisa que valha a pena fazer transcende fronteiras. Não devo fazer absolutamente nada?

  Não, eles contrapõem, e ninguém é tolo ao ponto de não saber isso. Até as cabras e as vacas sabem que se devem manter juntas. E a vossa visão não é assim tão má que não consigam ver, então como é que podem ser perdoadas?

  Quem é que está a pedir perdão! Ela dá gargalhadas e a filha que está cada vez maior chora. E é só isto que há para ver? Talvez eu própria já tenha visto uma ou duas coisas. Tentem ver a minha perspetiva pelo menos uma vez.

   Se ela caísse, não desejaria que fosse de cara para baixo. De onde quer que fosse a proveniência da bala, onde quer que a atingisse, ela cairia sempre para trás e ficaria deitada no chão. Regiamente. Os seus olhos repletos de céu.

   Deixa-me praticar, diria à sua filha.

   A mãe começara com soluços sem parar. Soluçava, soluçava e soluçava. Se a filha não estivesse naquele estado, ela teria desconfiado da veracidade ou da falsidade dos soluços. Não vão parar se beber água; dá-me uma palmada nas costas. A mãe exigiria. Se a palmada não for suficientemente forte, então, toma balanço e dá-me um pontapé, com estrondo! Tenta nas costas, no estômago ou nos lados, e assegura-te que caio de costas, de olhos abertos e a testa virada para cima; só aí os soluços vão certamente acabar. Era um remédio estranho, mas a filha fez o que a mãe lhe pediu. Ela pontapeou-a e pontapeou-a com força, e com esta nova estratégia a mãe continuava a cair no chão desamparada. Depois de um pouco de algazarra, os observadores começaram a rir à gargalhada, também. Consegues vencê-los? A velhota é demais. A mãe disse à filha que ela devia estar preparada.

  Enfim, abreviemos, o que aconteceu foi o seguinte: uma bala veio em sua direção, perfurou o seu corpo, atravessando-o e saindo do outro lado. Qualquer pessoa teria se estatelado de cara para baixo na lama, mas a Ma caiu de costas como se estivesse a dar uma cambalhota. Estava no chão com uma atitude de vitória, e, de uma forma elegante, com a cara para cima, como se estivesse reclinada numa cama macia e o céu a sua colcha.

  Aqueles que acham que a morte é um fim, acharam que isso era para ela. Mas aqueles que a conheciam bem sabiam que isto não era o fim; sabiam que ela tinha simplesmente atravessado mais uma fronteira.

  Por isso, não faz mal começar a história aqui mesmo, isto é, da forma como o estamos a fazer neste momento.

domingo, 17 de julho de 2022

 

Duas Mulheres Anónimas (Two Nameless Women)

Traduzido do Espanhol – Sarah Booker

Traduzido por Ivo Eduardo Correia

   Conseguia ouvir a água a correr assim que coloquei a chave na fechadura. Achei que a ia encontrar exatamente onde ela estava: na minúscula casa de banho, sentada na beira da banheira, com as mãos sob o fluxo de água quente. Estava a olhar fixamente para algo que eu não conseguia decifrar através da janela. Olhava insistentemente. Apenas se apercebeu que eu estava lá, quando fechei a torneira e apressadamente coloquei a toalha seca nas suas mãos quentes e vermelhas. “Olhe o que fez,” murmurei, tentando repreendê-la. “Parecem frangos recém depenados,” finalmente sorri, acariciando-as. Olhou para mim com um olhar vazio. Depois, pestanejou, e, inclinando a cabeça, olhou para as suas mãos. Levantou a direita até ao nível dos olhos, rodando-a para a inspecionar melhor.

“As mãos delas,” disse. “Eles cortaram as suas mãos.”

“Sim,” respondi enquanto, cuidadosamente, a levava em direção ao seu quarto de dormir. Depois de desligar a televisão ajudei-a a se sentar na cama para lhe tirar a roupa, calças largas e uma t-shirt de algodão e lhe vestir a camisa da noite de flanela com que costumava dormir. Fez-me sinal para lhe passar a escova do cabelo que estava em cima da comoda, e, assim que a segurou nas suas mãos, dedicou-se a escovar o seu longo cabelo grisalho. Parecia absorta, mais uma vez. A escova deslizava facilmente das raízes às pontas e depois fê-lo, novamente, uma vez mais.

“Desta vez eles também cortaram as suas pernas,” murmurou, olhando subitamente para mim.

“Sim,” respondi-lhe. “Vi nas notícias. Teremos de ter mais cuidado daqui para a frente,” concluí, dando-lhe algumas palmadinhas nas costas e oferecendo-lhe alguns comprimidos. De seguida fui à pequena cozinha e pus água a ferver. O tempo passa de forma estranha. Quando a chaleira começou a chiar, um som que me lembra sempre a sirene da polícia, não fazia a mínima ideia do que tinha estado a pensar. Fiz-lhe um chá de flor de laranjeira porque sabia que era um dos seus preferidos.

“E cortaram-lhes o cabelo, também,” disse-o como se fosse para si própria ao tomar o primeiro gole com uma calma inusitada. Virou-se para olhar para mim, e, apercebendo-me que estava a ser olhada, sorri para ela. Nunca sei o que realmente fazer nestas situações. Quando desliguei a luz do quarto de dormir, a velha senhora já estava a dormir sob os cobertores. A sua respiração constante, e as suas pestanas imóveis.

O edifício onde vivíamos era na verdade sombrio, mas tinha a vantagem de ser central. Podíamos ir facilmente a qualquer sítio sem precisar de carro, íamos de autocarro ou de metro quando precisava de levá-la ao hospital para os exames de rotina. Existiam imensos restaurantes na redondeza, de onde podíamos encomendar comida sem pagar a taxa de deslocação. Existiam lavanderias, uma estação de correios e uma esquadra de polícia. Consigo ver tudo isto das janelas do seu quarto andar. As luzes vermelhas, os semáforos.

Naquela noite sentei-me um pouco no seu cadeirão preferido antes de terminar a visita. Não sabia ao certo como é que ela ocupava os seus dias, sozinha, trancada no labirinto da sua própria cabeça, mas conseguia compreender as suas atividades nos indícios que ela deixava para trás: a televisão ligada, a porta do frigorífico aberta, um par de facas no balcão da cozinha. A sua família praticamente a esqueceu, visitavam-na, de vez em quando, especialmente no seu aniversário. Ela recebia um cartão ou dois ao longo do ano. Uma carta. Olhei pela janela, da mesma forma que a tinha visto fazer tantas vezes. A cidade tremia lá fora. Dava essa impressão de qualquer modo. Coloquei as pernas no divã e recostei-me no apoio de cabeça. As rachas no teto formavam um mapa ou uma floresta de árvores retorcidas ou uma rede de pesca onde um prisioneiro teria de lá cair. Fechei os olhos, como a velha senhora, e achei que talvez estivesse tão cansada quanto ela. Ou tão perdida. É mesmo necessário viver tanto? Abri os olhos e benzi-me antes mesmo de me por em pé. No escuro, o apartamento parecia um museu. As fotografias. Os tapetes. As cortinas. As colheres e os garfos. Os vasos. O papel de parede. Cada objeto cuidadosamente preservado. Não tocar. A mesa. As cadeiras. Não pude deixar de me perguntar quem é que acabaria por ficar com tudo isto no final. Apanhei o saco plástico onde tinha um pão e fatias de fiambre para fazer uma sandes. Depois de dar uma última olhadela no apartamento, saí e fechei a porta. Desci as escadas devagar até ao segundo andar. Qual a duração da eternidade medida em passos?

Na televisão continuavam a passar a mesma notícia. As raparigas mortas. Os sinais de tortura. A pergunta persistente sobre os seus nomes. Evitava olhar para as imagens, mas ouvia-os a recontar os acontecimentos a partir da cozinha. Uma festa que correu mal, um táxi, uma viagem para a eternidade. As sirenes da polícia interromperam os meus pensamentos. A água a ferver. Ao barrar a maionese no pão, imaginava o céu azul sobre os seus corpos. A luz solar, vertical como uma pá sobre a sua pele. A luz solar quando choca com os ossos. As bocas, abertas. Todos aqueles dentes preciosos. Caí para uma cadeira. Olhei para a parede. Com a faca ainda na minha mão direita, inerte como a estátua que eu já me tornara, pensei como é que elas não tiveram tempo de se sentirem cansadas. Pensei como teriam sobrevivido se tivessem sido salvas, podiam descansar as pernas no couro rijo do divã mesmo no centro de um quarto solitário.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

 

Fantasmas

Adam Foulds

Traduzido por Ivo Eduardo Correia

    A minha tia avó, Esther, ao visitar a primeira instituição pública social de apoio à comunidade do mundo em Whitechapel, deixou, por breves momentos, a excursão em grupo para caminhar através de uma entrada que dava para uma varanda, a partir da qual, ao olhar para baixo, avistou pessoas em vestes históricas a representar, o que ela pensava ser, uma espécie de peça. Ao se virar para chamar o marido, ela deu-se de conta que, inexplicavelmente, estava em frente a uma parede sem qualquer porta, embora, mais tarde, a guia confirmasse que teria havido uma há um século e tal atrás.

    A minha avó pensou que esta era uma história das habituais em Esther, que, de acordo com a minha avó, aparentava muito mais do que as suas faculdades banais. A primeira vez que a Esther conheceu a sua futura nora, a jovem de cabelo escuro, usava um vestido de noiva e um véu branco resplandecente que desapareceram num piscar de olhos e foram substituídos pelas suas roupas normais. A minha avó era uma pessoa mais prática. Não sabia cantar nem tocar qualquer instrumento. Quando era pequena no East End em Londres, ela via pessoas vestidas com roupas gris e antiquadas entre a multidão. Estas pessoas pareciam doentes e esfomeadas e a tentar chamar a atenção dos transeuntes, puxando as suas mangas, e correndo atrás delas na multidão, com atitudes suplicantes a pedir esmola e outras coisas. Uma delas captou a atenção da minha avó, estava em pé, parada, olhando diretamente para trás e … desapareceu, simplesmente.

     A minha irmã mais velha, de cerca de três anos, na altura, entrou a correr em casa vinda do jardim para dizer à minha mãe que o tio Harry estava lá fora, sentado numa das suas cadeiras, a sorrir para ela. (Sempre tive uma imagem mental bem clara deste encontro, embora, obviamente, não tenha assistido ao encontro: A camisa branca do Harry com um colete visível por baixo, e suspensórios, e o sol a brilhar levemente na sua careca castanha, na sua cara simpática, mas maciça a qual emanava amizade e paz.) A minha mãe começou por explicar que ele não estava lá, e, naquele preciso momento, o telefone tocou no hall de entrada dando a notícia da sua morte.

     Algumas semanas depois da morte do meu avô, o meu pai estava na Sinagoga e ao abrir o armário ornamentado que continha os pergaminhos sagrados da Torá, eis, quando, ele sentiu o meu avô a agarrar o seu braço. O meu avô foi à Sinagoga a vida inteira. Aqueles que estão familiarizados com estes locais, edifícios discretos em ruas comuns de Londres, conseguirão imaginar o conforto que ele sentia no seu interior, o conforto destas modestas interpretações de grandiosidade divina – bancos de madeira, uma mesa com os livros das orações com os nomes dos doadores colados no interior das capas, uma cortina de veludo em frente ao armário e sobre a tribuna com tecidos bordados a prata e ouro formando palavras hebraicas ou as estrelas de David, ou um pequeno leão de Judas, e sinos de prata tilintantes nas pegas dos pergaminhos. Ele conhecia de cor as cerimónias e conseguia assistir a elas mesmo em devaneio ou durante uma conversa com alguém. E, por isso, não é surpresa que ele aparecesse lá, e não em todos os outros sítios.    

    Se o meu avô quisesse te dizer algo, ele apertar-te-ia primeiro o antebraço a fim de chamar a tua atenção. “Ei!”, ele diria, ou “Ei, ouve!” ou “Ei, quero te dizer algo” ou “Ei, passa-me o sal, por favor!” Ele gostava de sal e de rábano. Ele apertava, ele abraçava, ele tinha acessos de fúria, e era de humores. Os seus olhos costumavam, às vezes, transbordar de afeto. Na Sinagoga, ele era muitas vezes convocado para o mitzvah da abertura do armário onde estão os pergaminhos sagrados da Torá, e, é por isso que o meu pai pensou que ele o agarrou nesse preciso momento. Era inequívoco, disse; era ele, sem dúvida.

   Eu próprio já vi algumas coisas. Eram menos claras, menos exteriores, eram mais pensamentos que caíam nos meus pensamentos vindos de algures. Uma vez foi a cara de um amigo que tinha acabado de morrer, a sorrir, radiante, completamente sem dores, o centro de uma vasta e irracional reafirmação. Permaneceu comigo, na minha visão durante uns instantes e depois desapareceu. Depois disso, consegui imaginá-lo de novo, mas não consegui mais me sentar simplesmente e olhar para ele. Ele já se fora. Recorro a esta memória de vez em quando. Confio nela, e apesar do meu receio, das minhas dúvidas, desvanece-se até desaparecer. Por razões profissionais e pessoais – casamento, vivo agora noutro continente, longe de todas aquelas pessoas, num mundo alheio a elas. Nada aqui remete a elas a não ser eu. Lá fora neva, abrandando o tráfico. Caras aparecem e desaparecem por detrás das máscaras. À noite, os números dos mortos rastejam ao longo do botão do ecrã da televisão. Se pudesse, atravessaria de imediato estas paredes.

 

O Livro da Forma e do Vazio

Ruth Ozeki

Vencedora do Women’s Prize for Fiction 2022

Traduzido do original por Ivo Eduardo Correia

No início

   Um livro começa algures. Uma letra corajosa tem de se voluntariar para ser a primeira, esperando na fila como um ato de fé, a partir do qual a palavra cria coragem e segue, levando uma frase ao seu despertar. A partir daqui um parágrafo acumula palavras e, em breve, uma página, e o livro avança encontrando uma voz, pedindo para existir.

   Um livro tem de começar algures e este começa aqui.

 

Um rapaz

    Sshh … ouvi!

    É o meu livro, e está a falar convosco. Conseguirdes ouvi-lo? Não faz mal se não o ouçam, entretanto. Não é culpa vossa. As coisas falam muito, mas se os vossos ouvidos não estiverem sintonizados, tende vós de aprender a ouvir.

   Podeis começar por usar os olhos porque é mais fácil. Olhai para todas as coisas à vossa volta. O que vedes? Um livro, obviamente, e obviamente, o livro está a falar convosco, por isso, tentai algo mais desafiante. A cadeira na qual estais sentados. O lápis no bolso. O ténis no pé. Ainda não conseguis ouvir? Então, ficai de joelhos e colocai a cabeça no assento ou tirai o sapato e colocai-o junto ao ouvido – não, esperai, se houver pessoas à volta, elas vão pensar que estais malucos, por isso tentai com o lápis primeiro. Os lápis contêm histórias em si, e são seguros a menos que enfiais a ponta no ouvido. Colocai-o perto da cabeça e prestai atenção. Conseguis ouvir o sussurro da madeira? O fantasma do pinho? O murmúrio do chumbo?

   Às vezes é mais do que uma voz. Às vezes é um coro de vozes inteiro a erguer-se duma simples coisa, especialmente se é um coisa feita por uma grande quantidade de fabricantes diferentes, mas não fiqueis amedrontados. Acho que depende do tipo de dia que estava a ter em Guangdong ou no Laos, ou onde quer que seja, e se estivesse a ter um bom dia na velha fábrica, se estivesse a desfrutar de um pensamento agradável naquele preciso momento em que aquela anilha especifica que vinha aos tombos ao longo da linha de montagem e passasse pelos dedos do trabalhador, então aquele agradável pensamento irá se agarrar ao orifício. Às vezes não é tanto um pensamento, mas uma sensação. Uma sensação agradável e calorosa, como o amor, por exemplo. Ensolarada e amarela. Mas quando é uma sensação triste ou zangada, uma que fica atada no vosso sapato, então é melhor ter cuidado porque aquele sapato pode fazer merda da grossa, como obrigar-vos a marchar até à porta de uma loja da Nike, ou, onde podereis, por exemplo, acabar por destruir a montra com um taco de basebol feito de madeira louca. Se isso acontecer, continua a não ser culpa vossa. Apenas desculpai-vos à montra, dizei, lamento pelo vidro e o que quer que façais, não tenteis explicar. O polícia que vos der ordem de prisão não quererá saber das condições horríveis na fábrica de tacos de basebol. Não quererá saber das motosserras ou do freixo resistente de que o taco é feito, por isso, calai-vos, simplesmente. Ficai calmos, sede educados, lembrai-vos de respirar. É importante não ficar preocupado, porque aí as vozes irão ficar em vantagem e controlar as vossas mentes. As coisas são carentes. Ocupam espaço. Querem atenção, e levar-vos-ão à loucura se o deixardes. Lembrai-vos, apenas sois como um controlador de tráfico aéreo, não, esperai, sois como um maestro de uma grande banda de metais, composta por todos os materiais brilhantes, coloridos e vistosos do planeta, e estais flutuando no espaço sideral, sentados neste grande monte de lixo que é a Terra, com o cabelo com gel, penteado para trás, e o fato limpo e elegante, e a batuta no ar, rodeados por todas as coisas impacientes, e por um breve e bonito momento, todas as vozes se silenciam, à espera que baixais a batuta.

    Música ou loucura. Tudo depende completamente de vós.

 


segunda-feira, 20 de junho de 2022

 

Anotações sobre Arte

Celia Paul

Consigo descrever o meu livro Cartas a Gwen John com a maior simplicidade, ao afirmar o que não é. Não é nem uma biografia da pintora Gwen John nem é sobre ser uma musa. Comparei e contrastei as experiências da Gwen John com as minhas. Explorei a questão se ela e eu somos culpáveis, em aspetos que nós não compreendemos, da nossa ofuscação em relação a artistas masculinos mais famosos do que nós, e, se é necessário que pintemos silenciosa e secretamente a coberto destas sombras. Se é a exposição que tememos acima de tudo.

Considero-me uma pintora, não uma escritora. Sou impelida a pintar todos os dias; só sou levada a escrever se tiver algo a dizer de uma forma explicita. Escrevi o meu primeiro livro Autorretrato quando já estava perto dos sessenta anos. Precisava que a minha vida, como um todo, fizesse sentido: Queria ligar-me à jovem mulher que escrevia ocasionalmente anotações no seu diário sempre que os sentimentos turbulentos por estar envolvida com um homem muito mais velho extravasavam. Precisava de aceitar esta jovem mulher como o meu próprio eu, mesmo à distância de muitos anos. Não estava à espera de escrever outro livro. A resposta a Autorretrato fez-me perceber que tinha de o fazer. A natureza da auto-negação é definida com excessiva facilidade como vitimização.

Um quadro é como uma carta: ambos vivem no presente permanente. Uma obra de ficção, por exemplo, requere que o leitor siga o percurso da narrativa através de todos os caminhos e desvios que o autor projetou. O percurso está fundado no terreno da narrativa. Com a pintura, o súbito impacto do presente é descrito como um todo, como uma paisagem vista de cima. Consigo comparar a pintura à uma carta escrita à mão na premência de registar manualmente o que se vê ou o que se sente, mas, em ambos os casos a desconexão e o abandono exigem um distanciamento fatalista. Olhar para um quadro é como testemunhar um relato na primeira pessoa de algo que está a acontecer neste momento. O mesmo se pode dizer da leitura de uma carta.

Uso de modo natural a escrita epistolar. Não sou nem uma pintora nem uma escritora que expõe com todos os pormenores. Uma história muitas vezes surpreende-me. A Gwen John escreveu muitas cartas. Numa delas afirma: “Para mim escrever uma carta é um acontecimento muito importante! Tento dizer exatamente o que tenho em mente”. O texto em forma de carta requere precisão. Apercebi-me que precisava de dizer mais sobre o tipo de pintora que sou, e que a Gwen John é. Tanto para mim quanto para ela, (e para muitos artistas) a qualidade espiritual dos quadros é o mais importante. E, por espiritual, não quero dizer “religioso” necessariamente. Um quadro mais do que misterioso, tem de ser estático. Não existem atalhos para atingir esta quietude. Não se pode ter uma vida atarefada e, pintar intensamente focados, quadros assim. Gwen tornou-se uma reclusa, por escolha própria. Tinha esperança que ao lhe escrever cartas, pudesse descobrir se esta também seria a minha escolha.

Cartas a Gwen John de Celia Paul foi publicado em abril de 2022 pela editora Jonathan Cape, no Reino Unido, e no New York Review Books, nos Estados Unidos. A publicação coincidiu com uma importante nova exposição, Celia Paul: Memory and Desire, na galeria Victoria Miro, em Londres, que esteve patente ao público de 6 de abril a 7 de maio de 2022.

 

Traduzido por Ivo Eduardo Correia

Este é um projeto de tempos livres. Sou um leigo nas lides da tradução, não tenho experiência nem Licenciatura nesta área. Gosto de desafios e de melhorar os meus conhecimentos linguísticos e literários. Sejam compreensivos!

sexta-feira, 17 de junho de 2022

 

As Encantadoras – (Wonders)

Elena Medel

Traduzido do Espanhol por Lizzie Davis e Thomas Bunstead

A Maria tem sono pesado. Quando se reformou, colocou o despertador num saco plástico e deixou-o na associação na prateleira dos artigos de segunda mão, caso alguém necessitasse de um. Durante anos não o usou, em vez disso, como toda a gente, substituiu-o pelo alarme do seu telemóvel – mas o gesto pareceu simbólico, como se fosse a história de outra pessoa, pensou, porque é que não seria útil a alguém que precisasse, um objeto noutra história cuja protagonista saísse de casa de madrugada?

De qualquer modo, ela quase sempre acorda sem ajuda, agitada quando os raios de sol se infiltram nos estores, ou quando alguém do apartamento ao lado começa no o seu duche matinal. Todos estes acontecimentos prepararam-na para este dia. A noite passada ao terminar a sessão no WhatsApp, a Laura escreveu o seguinte, “não acredito que está realmente a acontecer. Nas assembleias, nos encontros concelhios, a Maria está sempre a tentar evitar que as raparigas mais novas fiquem demasiado animadas, mas agora é ela que está animada, também”.

A minha vida inteira, os quase setenta anos que já vivi, conduziram-me, ao acordar esta manhã, a estar aqui na vossa reunião, a caminhar ao vosso lado. Elas foram instruídas na associação a dizer “faz o que quiseres, uma greve ao trabalho pago, uma greve como consumidora, uma greve aos cuidados médicos. Escolhe o que for melhor para ti, porque para nós está tudo bem, não estamos aqui para distribuir crachás à melhor feminista”.

O meu marido vai notar se eu não tiver a comida pronta para ele. Por isso, Amália, põe a sopa num Tupperware e diz-lhe que ele mesmo a pode aquecer. Será que ele consegue fazer isso? Dá-lhe uma aula para principiantes de como usar o micro-ondas, na próxima semana. Eu tenho de trabalhar, não me posso dar ao luxo de não ser remunerada, mas não se preocupem, encontro-me convosco mais tarde na Atocha. Será que cuidar de ti própria conta? Estou a pensar tomar um banho de imersão antes de sair de casa pela manhã, até ficar com a minha pele enrugada como se fosse uma ameixa seca.

Com certeza, porque não? Hoje trata-se de cuidar de nós próprias e das nossas irmãs. Na véspera, à tarde, várias delas tinham-se encontrado na associação: algumas, atarefadas, faziam sandes para aquelas que fossem para as ruas espalhar a mensagem, às mulheres que saiam das mercearias, e às que tinham ido para o trabalho; outras optaram por não fazer greve, mas apareceram bem cedo na sede para discutirem os acontecimentos nas diferentes cidades e aqui na sua cidade.

Será que ouvir rádio conta como fazer greve? Ver online o que está a acontecer? Elas destaparam uma bandeja embrulhada em papel de alumínio e passaram às outras fatias de pão-de-ló. Tinham frito empanadas, e as raparigas prepararam húmus e guacamole, uma das mais velhas mergulhou uma colher na panela de barro como se fosse sopa ou leite creme para deleite das raparigas. Não é assim que se come húmus. Parecia demasiado moderno para ela, e lembrou-se da sua mãe que tinha vivido durante a guerra, e nunca iria desperdiçar ingredientes naquele líquido; de onde é que pensa que és, do Nilo ou do Carabanchel, porque aqui no Carabanchel nós colocamos grão-de-bico no guisado.

Enquanto elas faziam as sandes de chouriço e salame, cortando-as em triângulos, embrulhando-as em plástico e empilhando-as no frigorifico, para serem distribuídas no dia seguinte, a Maria fazia uma lista de todos as marchas de protesto e greves em que não tinha participado: aquelas contra o Suárez, nos anos setenta, antes e depois; aquela contra a Nato; aquela a favor das pensões em 1985, a greve de 88 e as duas nos anos noventa, aquelas pelo Iraque e pelo Não à Guerra; aquela em 2010, as duas em 2012 – a marcha de protesto aqui contra o Rajoy, e aquela sobre a Europa – o comboio da liberdade, e aquela a favor da escolha. As manifestações, recorda uma das raparigas, já em idade universitária, “você esteve lá na manifestação Verde - a favor do Aborto”, afirma, e a Maria torna a contar como numa das manifestações, um repórter perguntou-lhe se ela estava a protestar em nome da sua neta, e ela, sem saber o que responder, disse que sim, que estava, em nome da sua neta e das netas das suas amigas, e as raparigas no grupo das mais novas na associação, acenavam para a camera sem lhe dizer (era segredo) que não eram relacionadas com ela.

A Maria, de forma convincente, menciona o primeiro e último nome dos homens que constituíram a sua biografia: Felipe, Boyer, Aznar – que nunca iriam conhecer algo sobre a mulher de setenta anos que tinha trocado um bairro semiconstruído numa cidade do sul de Espanha por um bairro social em Carabanchel, Madrid. Um dos ministros de Zapatero concedeu um prémio à associação, mas a Maria nunca o foi receber. Entregaram-no durante a manhã, mas como ela estava a trabalhar não pode ir.

“Então, Maria, já tinha visto muitas mulheres anteriormente nas reuniões?” Uma das raparigas, praticamente uma adolescente, colocou a questão de uma forma inocente, um fio de gordura de chouriço escorria pelo seu pulso abaixo até à ponta dos dedos; as suas mãos, calejadas, resultado do trabalho doméstico desde a infância, sempre sobressaíram aos olhos da Maria, que as via como um sinal de que iria acabar por usá-las mais do que a cabeça. Apesar da sua juventude, as coisas que a rapariga dizia espantava a Maria – a filha da filha de uma amiga, dizia para si mesma com uma sensação estranha de orgulho – ela exprimia as suas opiniões categoricamente, conseguia criar empatia com pontos de vista de outras pessoas, e, ao mesmo tempo, havia algo de reconfortante, para a Maria na afirmação, que confirmava o facto da rapariga ser inexperiente.

Não acredito que os homens não te deixassem falar. Costumava ir com os tipos da associação do bairro, a Maria explicou. Comecei a namorar com um deles cinco ou seis anos após me ter mudado para Madrid. Eu ia a essas reuniões para fazer do bairro um sítio melhor para se viver. Era uma zona perigosa, nessa altura, mais do que é hoje, toxicodependentes aos tiros em plena luz do dia, mesmo à entrada do meu prédio, e eles não se ficavam apenas pelos roubos por esticão, e, na altura, ainda havia zonas completamente degradadas, e mais distantes, as prisões. Todos tínhamos a sensação de que na margem sul do rio havia terrenos baldios cheios de nada e de ninguém. Claro que, nada e ninguém se referiam a nós.

Comecei a refletir sobre o que diziam nas reuniões, e comecei a tirar notas sobre alguns dos nomes dos escritores de quem eles falavam, eles e outros homens que eu não conhecia bem, nas reuniões e nos bares onde nos reuníamos a seguir. Costumava saltar de um escritor para outro e depois partilhava quaisquer que fossem as conclusões a que chegava com o mesmo homem de sempre, o meu companheiro – Pedro, era esse o seu nome – e costumávamos discuti-las. Ele costumava lançá-las à discussão na reunião seguinte, e todos eles ficavam extasiados com a sua pretensa inteligência, como se fosse um professor universitário. Mantinha-me em silêncio, porque ele fazia crer que as suas ideias eram melhores que as minhas.

Comecei a me reunir com algumas mulheres, a tua avó, algumas outras amigas, nas suas casas, e em minha casa também, e era aí que nós costumávamos falar de temas que nos diziam mais respeito, coisas que os homens não tinham interesse: o divórcio, o aborto, a violência, não apenas a física, mas a psicológica também. A tua mãe começou a me sugerir livros que estudou durante a licenciatura, e eu continuei lendo e aprendendo, e comecei a me aperceber que quanto mais pensava por mim, mais o Pedro se sentia desconfortável. Por isso, nós, eu e a tua mãe, conversámos; conversávamos muito como sempre o fizemos, e, então, decidimos pedir à associação se podíamos criar um grupo de mulheres. Nas suas mentes seria apenas para trocarmos ideias sobre roupas e receitas. Bem, a tua mãe e algumas das suas amigas universitárias mudaram-se para cá e começámos a causar embaraços. A Câmara Municipal arranjou um sítio para nos reunirmos, mas depois voltou atrás quando nos queixámos da falta de luz no parque. Com algum dinheiro amealhado por todas nós, alugámos o nosso próprio espaço. Nessa altura, eu trabalhava o máximo de horas possível, limpando escritórios nos Nuevos Ministérios; quando acabava, comia qualquer coisa, uma sandes no metro, ou qualquer coisa que fosse rápida de fazerem casa, e nem tinha tempo de me sentar um pouco, e em algumas noites eu saía para me encontrar com o Pedro apenas por uns instantes, não acho que tenha sido tão feliz como nessa altura. Nem mesmo agora que vou descansar, quando passo o dia todo na associação e vos vejo a todas a se ajudarem mutuamente. Foi a primeira vez na vida que senti que as pessoas me ouviam quando falava, que respeitavam o que eu dizia, e não porque me queriam levar para a cama, ou porque deixavam de prestar atenção a algo que eu abordava e que não lhes dizia nada, mas sim porque me compreendiam, que concordavam comigo, e pensavam que o que eu dizia era algo que valia a pena ouvirem. Houve um momento, quando tudo isso, ao pensar em algo e ao verbaliza-lo, ao fazer as coisas que eu dizia que faria, a associação parecia-me muito mais importante do que qualquer outra coisa que o Pedro pudesse alguma vez me oferecer. Ele queria que fossemos viver juntos, mas apercebi-me que nada disso tinha a ver com amor. Eu não era uma pessoa – Maria – mas algo – algo que ele sentia que lhe pertencia – o seu apartamento, o seu carro, a sua mulher.

Esta cicatriz - e ela aponta para o seu queixo, um arranhão que sobressai da sua pele branca – fiz isto quando, uma vez, saía do autocarro à pressa, tropecei e caí e ele não fez absolutamente nada, não se preocupou minimamente comigo. Estivemos juntos um ano, depois disso.

Por essa razão, não: quero dizer, nunca houve mulheres como nós. O que é que quer dizer com isso, Maria? Mulheres pobres. Até para protestarmos, precisamos de dinheiro.

 

Traduzido por Ivo Eduardo Correia de Granta Magazine 

Este é um projeto de tempos livres. Sou um leigo nas lides da tradução, não tenho experiência nem Licenciatura nesta área. Gosto de desafios e de melhorar os meus conhecimentos linguísticos e literários. Sejam compreensivos!

quinta-feira, 16 de junho de 2022

 

Memórias de uma ilha

Tove Jansson & Tuulikki Pieitilä

 

Brunström falava às vezes do grande degelo. Ele costumava dizer “se não viste isso, então não viste nada”, e não estou a falar, neste momento, do gelo quando se quebra numa daquelas pequenas baías no interior do arquipélago.

O Tooti e eu decidimos que tínhamos de assistir a um desses momentos quando o gelo começa a quebrar, no entanto, levou alguns anos até que tivéssemos a oportunidade de lá irmos. Estávamos em março – um inverno tardio e uma primavera precoce.

Alugámos um hidrocóptero construído por Valter Liljeberg em Pellinge, feito de placa fina de madeira e reforçado com fibra de vidro. O motor era Chrysler. Na popa o hidrocóptero tinha um propulsor, separado da cabine dos passageiros pelas suspensões horizontais duma cama de metal rebatível – da marca Heteka.



Deixaram-nos levar apenas uma mochila, sentámo-nos com os joelhos encolhidos até ao peito. O motor pegou com um rugido, e o aparelho moveu-se ao longo do gelo a grande velocidade até que abrandou, afundando-se até à balaustrada e começou a chiar. Depois, deslizou para a frente muito devagar, engatinhou de volta ao gelo e avançou de novo. E continuámos nisto, aos repelões, durante todo o percurso até ao canal dos barcos, que estava cheio de blocos de gelo. O comandante saiu e deu um pontapé no bloco de gelo mais próximo, depois saltou de novo para dentro do aparelho, e o hidrocóptero virou o nariz do para um rumo diferente, fez um desvio e aí tudo correu bem. Voámos como o vento o último quilometro ao longo do gelo vítreo, escuro e transparente, deslizando sobre os baixios onde a floresta de algas castanhas ondulavam por baixo de nós.

Chegámos à ilha e o hidrocóptero regressou à base.

Quando entrámos na cabana sentimos logo aquele frio arrepiante que Brunström costumava designar por “a toca do lobo”, alguém tinha usado toda a lenha. Encontrámos algumas paletes de madeira na cave e usámos para nos aquecermos, e também aparas de madeira e descongelámos alguns toros que estavam cobertos de gelo.

Vibrámos de emoção pela mudança e pelas expectativas e corremos precipitadamente na neve aqui e ali e atirámos bolas de neve ao marco geodésico. Tooti construiu um trenó com finas tiras de madeira, e conduzimo-lo repetidamente ao longo do gelo desde o topo da ilha até ao extremo mais longínquo.

Quando nos cansámos desse jogo, sentámo-nos e fizemos o ponto da situação. O mar refletia a luz solar para onde quer que olhássemos. Foi aí que nos apercebemos do silêncio absoluto.

E que estávamos a sussurrar.  



E a longa espera chegou. Apoderou-se de mim um sentimento de desapego totalmente novo, ao contrário do isolamento, era apenas a sensação de ser um forasteiro, sem preocupação ou culpa sobre o que quer que fosse. Não sei como é que aconteceu, mas a vida tornou-se simples e fiz de tudo por ser feliz.

O Tooti fez um buraco no gelo para deixar o nosso lixo.

Tornámo-nos cada vez menos stressados, cada vez mais calmos e cumprimos as nossas tarefas diárias como se estivéssemos lá sozinhos. Era muito relaxante.

E uma noite aconteceu, mas muito longe da costa, provavelmente ninguém assistiu. Parecia um trovão distante ou um tiro de canhão. Corremos para o topo da ilha, mas o gelo no mar parecia igual em todas as direções. Estivemos à espera imenso tempo, ao frio glaciar, mas nada se passou, por isso, acendemos o lume na lareira, e fomos dormir.

Incapaz de esperar, quando o nosso próprio objetivo grandioso era esperar, é imperdoável.

O que é que eu estava a pensar quando estava no cimo do Vesúvio? Gostaria mesmo de saber. Quero dizer, lé estava ele a se comportar mal, e eu estava lá! Tinha 19 anos e tinha esperado toda a minha vida para assistir a uma montanha a cuspir fogo. A lua já estava no céu, os pirilampos também; a Terra estava incandescente – e o que foi que eu fiz? Obedientemente, regressei ao hotel no autocarro de turismo afim de tomar o meu chá e ir para a cama! Quem é que ocupa o seu tempo a dormir, quando algo está a acontecer finalmente. Poderia ter ficado a noite inteira e ter tido o Vesúvio só para mim.

Seja como for, dormimos de mais. Quando acordámos todo o oceano estava cheio de pedaços de gelo. Pedaços de gelo impressionantes flutuavam à deriva, levados pela suave brisa de sudoeste, esculturais, cintilantes, tão enormes como carros, catedrais, cavernas primitivas, tudo o que se possa imaginar. E eles mudavam de cor sempre que lhes apetecia – azul, verde e à noitinha, laranja. E de manhã cedo, cor-de-rosa.

O vento começou a soprar e os blocos de gelo começaram a chocar uns contra os outros, erguendo-se, baixando-se (como se estivessem numa orgia, de acordo com o Brunström).

Eles mudavam de aspeto continuamente e de uma forma fantástica em direção à derradeira transformação em água.

A água da lagoa permanecia parada, congelada até ao fundo, a sua enseada cheia de neve pura e intacta entre as rochas basálticas.

O Tooti dizia algo como “tudo fica muito bem quando é a cores” muitas vezes ao dia, mas para mim as cores mais puras e dignas continuam a ser o preto e o branco.


Traduzido por Ivo Eduardo Correia de Granta Magazine 

Este é um projeto de tempos livres. Sou um leigo nas lides da tradução, não tenho experiência nem Licenciatura nesta área. Gosto de desafios e de melhorar os meus conhecimentos linguísticos e literários. Sejam compreensivos!

16-05-2022

 

 

Proposta de amizade (Overture)   

Janice Galloway

 

Para apanhar um polvo é necessário permanecer imóvel. E um par de olhos apurados.

Nem mais, nem menos.

Agosto e setembro são os melhores meses, porque nessa altura as crias do polvo estão sozinhas, as fêmeas regressaram às profundidades e abandonaram-nas completamente nas águas pouco profundas. Escolha uma poça marinha cujas águas sejam algo turvas entre declives planos cheios de pequenas cavidades de ambos os lados e que, depois, seja fácil de subir à superfície. Se a pequena poça natural tiver a profundidade certa e não for mais larga do que um poço, melhor. O sítio ideal - se à volta as águas estiverem agitadas. Tenha em conta a rapidez com que a maré sobe, observe se a água está a subir ou a vazar. Não pretende se afogar, pois não? Verifique os buracos na rocha, os seus padrões e os sítios onde estão, para quando descer tenha onde apoiar as mãos e os pés em segurança. Quantos mais buracos melhor: debaixo de água são sítios propícios para peixes, moluscos e pequenos invertebrados se esconderem. Quando tiver a certeza do caminho a seguir, comece. Conserve a sua cara virada para a rocha, os dedos esticados, e deslize pela beira. Enfie os dedos dos pés em cada um dos apoios à procura de lodo ou de ocupantes instalados antes de confiar no seu peso: Experimente à mesma os apoios para as mãos. Algo com pinças pode ripostar. A seguir, desça até os seus calcanhares entrarem na água e a luz acima se tornar menos brilhante. Preste atenção à corrente. Aja como um gato, com muito cuidado. Coloque o seu queixo firme contra a rocha e olhe para o fundo. Verifique até onde consegue ter visibilidade. Faça figas para que haja areia em baixo, que não haja cacos ou crustáceos. E quando estiver pronto, inspire fundo, e desça.

Desça. O choque é momentâneo.

Abra os olhos.

Observe as formas desenhadas pela luz aquando da ondulação, tudo aquilo é movimento. Eles sabem que está lá. Ignore as estrelas do mar. Ignore os caranguejos. Não se preocupe com o que não for voluptuoso. Deixe os seus braços leves, os seus ombros descaírem, e aguarde. Aguarde. E elas virão. Como fantasmas que surgem de sítios secretos, por sua própria iniciativa, elas virão, apesar de tudo, porque são curiosas incapazes de resistir. Primeiro, uma, pequena como um punho, os seus pequenos tentáculos desenrolando-se a fim de encontrar o seu pulso, envolve-lo com pele macia. Ela pode detetar a palma da sua mão. Está na sua natureza explorar o meio à volta. Agora ela está seduzida pela curiosidade. Tente não fazer nada, mantenha-se imóvel. Deixe que ela apresente o seu abraço e enrole os seus tentáculos. Lentamente, toque nela. E ela enrolar-se-á com prazer, pressione-a contra a sua mão como se fosse uma gatinha, e queira mais. Quando ela se tornar adulta o seu bico vai morder até ao osso pois ela tem consciência de que você é traiçoeiro, mas, neste momento, ela é apenas uma cria. Ela não tem malicia. Deixe que São Francisco seja o seu guia. Um animal selvagem encontrou-o. Você foi abençoado por isso. Deixe ela ficar até que os seus pulmões já não consigam mais e precise de voltar à superfície, o seu ambiente natural. Um dia ela vai povoar os mares de todos os continentes. Veja como ela se desloca. Vire a sua cara para a luz à medida que ela se vai embora

vai embora

vai embora

 

Traduzido por Ivo Eduardo Correia de Granta Magazine 

Este é um projeto de tempos livres. Sou um leigo nas lides da tradução, não tenho experiência nem Licenciatura nesta área. Gosto de desafios e de melhorar os meus conhecimentos linguísticos e literários. Sejam compreensivos!

sexta-feira, 10 de junho de 2022

 Auto-reflexão 

 O líder do século XXI

Todos nós, ao longo da vida, fomos, somos ou seremos, de uma forma ou de outra, líderes. Como pais, como professores, como membros de um partido (alguns), de um governo (muito poucos), como membros de uma qualquer equipa de trabalho ou desportiva. Nem todos, porém, temos o perfil adequado: uns pela personalidade e carácter , outros pela sua falta. Essas competências devem ser inatas, apenas as sublimamos com o tempo e a experiência. 

Este século, com os seus mais recentes paradigmas, coloca-nos novos desafios de liderança, que nos levam a recalibrar expetativas, objetivos e comportamentos perante os outros.

Um líder autenticamente transformacional é um líder que fomenta os valores da lealdade, da justiça, da equídade, da honestidade, da verdade, da franqueza, da harmonia e do trabalho sério. Promove políticas, procedimentos e processos éticos. Procura desenvolver competências de liderança nos seguidores. Ajuda-os a serem mais competentes e bem-sucedidos. Valoriza-os em público; todavia, critica-os em privado, quando assim tiver de ser. Não humilha, não demostra sentimentos de vingança. Para ele, as pessoas são um fim em si mesmo, e não instrumentos. Através do comportamento adotado, o líder causa respeito, empatia, carisma nos seus semelhantes.

Enfim, um líder cria uma relação umbilical com os seus colaboradores, mas, de modo algum, compactua com bajuladores e graxistas.

Julho de 2022


dezembro de 2022 - para refletir!

Quero, mando e posso!

A uma semana de 2023, o ano de 2022 acaba com um chorrilho de suspeições sobre líderes europeus, sobre políticos nacionais e outras "gentes" da sociedade civil, todos eles com responsabilidades em várias áreas da nossa sociedade. A corrupção grassa, a justiça dormita, a mentira, a intrujice e a vingançazinha / inveja imperam, a bajulice  e a hipocrisia são rainhas. "A caravana passa e os cães não ladram". Os(As) "Yes Men/ Women" continuam a sua cavalgada dissimulada e ignóbil rumo a algo inatingível, pobres criaturas, nem se apercebem que um belo dia serão "descartadas" em nome de um "mal maior". 

Que o espírito natalício seja o vírus perfeito para inverter este status quo. Dúvido!



sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Ano novo! 2021 que ano?

    

Todos os anos a passagem de 31-12 para 01-01 traz-me, sempre, uma expetativa acrescida sobre o ano que entretanto se inicia. Este ano não foi exceção. Apenas que à expetativa acrescentei, também, a preocupação. Preocupação a nível pessoal e familiar. Como serão as nossas vidas em 2021? Que desafios iremos enfrentar? 

   Entrei na terceira fase da minha vida, os sessentas! Daqui para a frente, sei que a vida torna-se, aparentemente, mais rápida e há que aproveitar todos os momentos que ela nos proporciona. Reconheço que a rotina tem um grande poder sobre a minha vida, e que um dos desafios que tenho pela frente é alterar esta situação. Uma das resoluções para 2021 é saborear melhor todos os momentos. Tenho a noção de que a nossa existência é fugaz e que o amanhã pode não chegar.  

    A pandemia roubou-nos a proximidade com o outro, os afetos. Algo tão simples como um abraço ou um beijo deixou de ser um gesto corriqueiro e, hoje, é um risco. Espero, sinceramente, que num futuro próximo possa abraçar e beijar aqueles entes mais queridos e não só. Sou otimista por natureza, acredito que as fases más passarão e que outras melhores virão. Se assim não fosse, a nossa existência não teria sentido absolutamente algum. 

    Temos de ser resilientes e pacientes perante os desafios que enfrentamos diariamente. Desafios de toda a ordem, e temos de estar preparados para lidar com eles. Todos os dias, criamos situações, quer pelas opções que tomamos, quer por algo em que nos vemos envolvidos, e temos de ser fortes, mesmo destemidos afim de as ultrapassar com sucesso. A vida ensina-nos, é verdade, mas aqueles alguns que estão à nossa volta são, pois, importantes nesse sucesso. Esses alguns, com a sua sábia experiência de vida, fazem-nos ver as coisas de outra perspetiva, tornam-nos melhores seres humanos. O melhor amigo não é aquele que diz sim a tudo o que dizemos ou fazemos, é aquele que nos questiona, que nos critica, que nos azucrina, que se preocupa connosco.

     Sejamos mais flexiveis nas nossas atitudes, nos nossos julgamentos, não tiremos conclusões precipitadas, ouçamos todas as histórias e tiremos as nossa próprias ilações. Sejamos coerentes com os nossos valores, não aceitemos sem antes questionarmos. Não sejamos "carneiros" de ideologias só porque são populares. O ser humano tem uma qualidade excecional - ser diferente, ser único! Não acreditemos em tudo o que nos dizem ou mostrem, façemos nós o juízo. E acima de tudo, respeitemos a diferença, o outro é tão mais interessante se for diferente de nós. 

        Termino com um apelo, que sejamos mais compreensivos, tolerantes, altruistas para com os nossos semelhantes, tendo sempre a consciência, que eles podem não ter tido as mesmas oportunidades, a mesma "sorte" que nós tivemos!

        2001, sê amável connosco!



segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

                                     


2020 foi um ano atípico praticamente em todas as áreas da cultura, e a música não foi exceção. No entanto, muitos bons músicos fizeram das tripas coração e editaram algumas “preciosidades” naqueles géneros de música que eu mais prezo. Aqui vão os meus preferidos. Infelizmente, alguns ficaram de fora por não me lembrar deles, outros, porque não podem todos caber nesta lista. Dividi a lista em três grandes géneros, Hip-Hop / Soul / R&B; Indie / Rock / Folk; e Alternative.

 

Hip-Hop / Soul / R&B

Indie / Rock / Folk

AlternativE

 

-       Channel Tres – I can´t go outside

-       Run the Jewels – RTJ4

-       Drakeo the Ruler – Thank you for using GTL

-       Ka: Descendants of Cain

-       Jay Electronica – Act II Patents of Nobility

-       J Hus – Big Conspiracy

-       Body Language- Travel Guide

-       Sault – Untitled (Black is + Rise)

-   David Ramirez – My Love is a Hurricane

-    Amaarae – The Angel you don’t know

-      Yves Tumor – Heaven to a Tortured Mind

-       Ben Harper – Winter is for Lovers

-       Pa Salieu – Send them to Coventry

-       Weiland – Weiland

-       Keiyaa – Forever, Ya girl

-       Lous and the yakuza – Gore

-       Dua Saleh - Rosetta

     Naeem - Startisha

     Kamaal Williams - Wu Hen

     Teyana Taylor - The album



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

-       The Microphones – Microphones in 2020

-       A. A. Williams – Forever Blue

-       Osta Love – About Time

-       Bdrmm – bedroom

-       Dehd – Flower od Devotion

-       Fontaines DC – A Hero's Death

-       The Bobby Lees – Skin Suit

-       st. south – get well soon

-       Marlon Williams – Plastic Bouquet

-       Samantha Crain – A Small Death

-       Cinder Well – No Summer

-       Matt Berninger – Serpentine Prison

-       Kevin Morby – Sundowner

-       Sufjan Stevens – The Ascension

-       Grant-Lee Phillips – Lightning, show us your stuff

-       Burd Ellen – Says the Never Beyond

-       Laura Veirs – My Echo

-       Lera Lynn – On my Own

-       Katy J Pearson – Return

-       Porridge Radio - Every Bad

-       Creeper – Sex, Death and the Infinite Void

-       Lomelda – Hannah

-       Phoebe Bridgers – Punisher

-       Fiona Apple - Fetch the bolt cutters

-    Yorkston, Thorne, Khan - Navarasa -Nine Emotions

-    Sam Lee - Old Wow

-    Bróna McVittie - The Man in the Mountain

-    Alasdair Roberts - The Songs of my Boyhood

-    Mac Miller - Circles


 

-       Club Sport- Like Nirvana

-       Oscar Jerome – Breathe Deep

-       Caitlin Pasko – Greenhouse

-       Deradoorian – Find the Sun

-       King Hannah – Tell me your mind and I’ll tell you mine

-        Arca: KiCk i

-       Rina Sawayama – Sawayama

-       Working Men’s Club – Working Men’s Club

-       Plini – Impulse Voices

-        Bo Ningen - Sudden fictions

-    Denai Moore - Modern Dread

-    Drab City - Good songs for bad people

-    Let it come down - Songs we sang in our dreams

  -  J.J. Wilde - Ruthless

  -  Harmony Byrne - Heavy Doors 

  -  Coriky - Coriky

-    Blacks Orchids Empire -Semaphore

  -  Jockstrapp - Wicked City

  -  Gia Margaret - Mia Gargaret

  -  Jehnny Beth - To love is to live

  -  Forest Bees - Forest Bees

  -  Mrs Piss - Self Surgery

  -  Other Lives - For their love

  -  Beverly Kills - Elegange is a State of Crisis EP

  -  Zsela - Ache of Victory EP

  -  Surfrock - Existencial Playboy

  -  Ghostpoet - I grow tired but dare not to fall

  -  Marlin's Dream - Quotidian 

  -  Bad History Month - Old Blues

  -  Houses of Heaven - Silent Places

  -  Celeb Landry Jones - The Mother Stone

  -  Lyra Pramuk - Fountain