Naomi
Sarah
Hall – tradução Ivo Eduardo Correia
Quando tinha oito anos a minha
mãe morreu e a Naomi apareceu. O meu pai ainda vivia connosco nessa altura;
tínhamos uma casa na orla da cidade, numa das ruas ingremes que levam ao farol,
de onde se vê as montanhas do interior. Estávamos perto do Natal. Os cumes
estavam cobertos de neve e o ar frio e rarefeito. Estávamos às compras,
presentes de Natal e o meu pai tinha trazido o carro – a casa de bonecas que
queria era bastante grande, demasiado grande para ser levada à mão, por isso
tinha a certeza que me a iam comprar. A minha mãe tinha estado a se queixar o
dia inteiro de uma dor de cabeça. Em cada loja que entrávamos ela fazia uma
cara de dor.
Estas luzes tão brilhantes.
Ela continuava a arrastar os pés e a se sentar, esfregando a testa.
Tínhamos estado na antiga biblioteca cívica, e, pouco habitual nela, não levou
nenhum livro emprestado. O meu pai estava preocupado.
Porque é que saíste de casa com essa enxaqueca? Queres que te leve a
casa?
De regresso ao carro, ela tropeçou. O meu pai ia um pouco à frente para
ligar o carro e o aquecimento. Ele não viu. Ela perdeu o equilíbrio e caiu no
pavimento, ajoelhou-se por uns instantes na neve enlameada, depois inclinou-se
e sentou-se.
Adam, ela chamou pelo meu pai. Onde está a Edith? Está
contigo?
Ela parecia muito calma. O seu discurso era lento.
Adam, não consigo vê-la.
Achei que ela estava a começar um daqueles jogos interessantes – ela
conseguia ser parva e brincalhona. Eu não estou aqui, mamã, disse-lhe,
andando por detrás dela. E, não estou aqui. Ela levantou uma mão e
cuidadosamente apalpou o ar.
Não consigo. Ver.
Agachei-me à sua frente, olhei-a fixamente, abanei a minha cabeça de um
lado para outro. Os seus olhos não acompanhavam.
Uma das iris parecia um planeta negro.
Chamei o meu pai.
O meu pai voltou para o nosso pé.
Afasta-te, disse-me. O que é que se passa, Naomi? Porque é que
estás sentada aí, estás a ficar toda suja?
Ela levantou o braço e o meu pai pegou nela, levantou-a. Quando a
largou, ela desequilibrou-se e quase caía de novo.
Ele acompanhou-a ao longo do parque de estacionamento, abriu a porta do
Volvo e ajudou-a a entrar para o banco de trás. A cada movimento ela perdia
força, como se fosse um brinquedo que estava a ficar sem bateria. Permaneceu
quieta no banco de couro vermelho, os seus olhos abertos e vazios.
Vai à frente,
o meu pai ordenou-me.
Era a primeira vez que me deixavam ir no lugar do passageiro. Coloquei o
cinto de segurança. Estava folgado, pois estava como se fosse para um adulto. O
meu pai arrancou com o carro, conduzindo sem pressa e parando nos semáforos.
Por qualquer razão, achei que fossemos a caminho de casa. Continuava a me virar
para trás para ver a minha mãe como estava. Ela respirava de uma forma
acelerada, as suas pálpebras começavam a descair. Ela tentou falar, mas as suas
palavras eram sons sem nexo. Da sua garganta saía um som metálico. Olhei de
novo, e a sua face estava cheia de baba.
A mãe não está bem. Ela não está bem.
Certo, obrigado, Edith, o meu pai disse-me.
Não estava assustada. Ninguém no carro estava com receio do que se
estava a passar.
Agora vira-te e senta-te direita.
Ele conduziu até à porta das urgências. Parou o carro e puxou o travão
de mão.
Fica aqui, ordenou-me.
Também quero entrar.
Não, disse.
Mas quero ir com a mamã.
Ele estendeu a mão sobre a alavanca de velocidades e deu-me uma palmada
nas pernas, uma palmada desajeitada que atravessou a minha saia e os collants.
Depois saiu do carro, entrou nas urgências e veio acompanhado por um auxiliar e
uma cadeira de rodas. Tiraram a Naomi de dentro do carro e colocaram-na na
cadeira de rodas. Observei-a a ser levada para dentro, o seu corpo a descair
para o lado. Os meus olhos lacrimejavam, as lágrimas refratavam tudo, e, por
breves instantes, havia duas mulheres descaídas em duas cadeiras de rodas,
pisquei os olhos e uma delas desapareceu. O carro cheirava a azedo. Devido ao
frio no exterior quando coloquei a palma da minha mão no vidro do passageiro os
contornos ficaram visíveis. Uma ambulância parou ao lado do carro e os
paramédicos descarregaram uma maca.
Quando o meu pai voltou ao carro, não me pediu desculpa. Não disse nada.
Estacionou o carro. E levou-me em silencio para dentro do edifício, a sua mão
pousada nas minhas omoplatas.
A rececionista emprestou-me livros infantis.
Pareces uma menina esperta, ela disse. Aposto que consegues ler estes
livros sozinha?
Ouvia-a falar com os médicos, com o meu pai, ao telefone. Estavam a
planear transferir a minha mãe para outro hospital o mais rapidamente possível.
Enquanto o meu pai foi à casa de banho, dirigi-me discretamente à rececionista
e perguntei-lhe se podia ver a minha mãe.
Não, boneca, não podes, tem paciência. Ela está muito doente e
precisa de ser operada.
Qual é o problema? Perguntei-lhe. É a dor de cabeça?
A rececionista disse que sim com a cabeça, mostrando-se satisfeita, já
que eu tinha respondido a uma pergunta de escola acertadamente. Ela tem um
coágulo de sangue no cérebro. Ora, já aqui está de novo …
O som do helicóptero a se aproximar era inconfundível – as pás furiosas,
o ar fazendo remoinho contra o edifício ao aterrar. De repente, apercebi-me que
era muito grave. Os helicópteros eram usados para resgatar montanhistas que
tinham se despenhado dos cumes. Eram usados no salvamento de vidas. Por uns
instantes, achei que iriamos todos, estava iluminada de entusiasmo e medo;
nunca tinha voado anteriormente. Mas, quase de seguida, o helicóptero levantou
voo, mais barulhento do que nunca, parecia, os rotores gemendo, uma explosão de
barulho ensurdecedor. Uns segundos depois parecia um drone distante.
O meu pai levou-me para casa, fez-me torradas, e pediu-me para ir para a
cama.
Tens de ser uma menina grande, Edith. Fiquei olhando as estrelas
cintilantes coladas no teto do meu quarto.
Na manhã seguinte disse-me que a minha mãe tinha sido transportada de
avião para Newcastle onde foi operada. Teria de permanecer no hospital várias
semanas.
Foi uma operação muito delicada. Tiveram de fazer algumas coisas, o que
significa que ela não será a mesma durante algum tempo. Ela pode nem saber quem
tu és.
Ele estava a usar as mesmas roupas do dia anterior. Os seus olhos
estavam inchados. A sua face parecia inchada e as suas feições estavam
concentradas lá.
Sim ela vai-me reconhecer, disse-lhe.
Ele abanou a cabeça que sim.
Ela está em coma. A mãe da Christine vem tomar conta de ti hoje.
Passamos o Natal só os dois, comendo miseravelmente tarte de carne
moída. A árvore ficou por decorar; apenas o seu cheiro era festivo e
tranquilizador. Não houve casa de bonecas. O meu pai comprou-me um casaco à
última da hora; o preço ainda lá estava. Na primeira oitava deslocou-se ao
hospital outra vez. Os pais da Christine fizeram-me uma festa, deram-me
chocolates e leite. A Christine perguntou-me se a minha mãe ia morrer.
Menti-lhe e disse que a acompanhei no helicóptero. Quando o meu pai chegou para
me vir apanhar, ouvi-o a falar em voz baixa com a mãe da Christine, enquanto
fui buscar os meus sapatos e o casaco.
Parece o Frankenstein, disse. Está mesmo horrível. Sempre
que ele fazia o trajeto até ao hospital, perguntava-lhe quando é que a poderia
ver.
Ainda não, era tudo o que me dizia. Ela ainda não está bem.
Ela não se lembra.
Na minha primeira visita ao centro de reabilitação, a minha mãe estava
sentada numa mesa fazendo um desenho. Tinha uma faixa de pelos no cabelo que
continha uma extensa cicatriz com os pontos levantados parecendo uma lagarta.
Um lado da sua face parecia repuxado e levantado. Fiquei à porta, demasiado amedrontada
para me aproximar.
Vai, o meu pai ordenou-me. Querias vir. Vou buscar um café.
Ele não estava a olhar para a minha mãe, não a tinha cumprimentado.
Ele afastou-se e caminhou pelo corredor. A minha mãe não parecia que tivesse
se apercebido que eu estava lá. Ela vestia um pijama azul pálido com flocos de
neve o que a fazia parecer mais nova. Uma enfermeira entrou no quarto atrás de
mim.
Deves ser a Edith. A tua mãe tem tido saudades tuas. Vem.
Ela levou-me até à mesa, puxou uma cadeira e sentei-me. A enfermeira
colocou carinhosamente um cachecol à volta da cabeça de aminha mãe e amarrou-o
atrás, cobrindo o vergão roxo, curvo.
Agora
sim.
Mas eu não consegui deixar de não ver a ferida horrível. O desenho era
infantil, uma árvore ou uma figura. Parecia confusa com a linha que estava a
desenhar, que direção seguir. Tirei o lápis da sua mão. Olhou para mim. O seu
olhar era vazio, mas curioso, como um pássaro avaliando um objeto no chão.
Acabei a linha, desenhei um ninho no galho com ovos pintados no seu interior. A
sua boca abriu e fechou várias vezes, fazendo um estalido como se estivesse a
humedecê-la. Com um esforço concentrado, quase físico disse, saa, no, mi.
Olhei para a enfermeira que sorria.
O que é que ela está dizendo? Perguntei.
A enfermeira pôs as mãos nos seu ombros para parar o movimento espásmico
que estava a aumentar.
Ela está a se apresentar. Está a dizer, sou a Naomi.
A hemorragia tinha causado danos irreversíveis, e o procedimento trouxe
as suas próprias consequências. Uma secção precisa do osso tinha sido serrada e
removida, e o vácuo original do órgão rompeu. Os médicos tinham remendado o
tecido, cortado o vaso, e o fluxo sanguíneo do cérebro foi redirecionado. Contra
todas as previsões, a rutura não a tinha matado. A Naomi iria recuperar,
lentamente, anatomicamente, mas algo fundamental foi interrompido durante a
operação de reparação – a complexa biblioteca do pensamento, da memória, da
emoção e da personalidade. Salvaram-na a vida, mas não a conseguiram salvar. O
exame pós-cirúrgico revelou uma segunda protuberância, inoperável, muito difícil
de lá chegar. Havia outra espada vermelha e macia suspensa dentro da sua cabeça.
Deveriam lhe ter dito depois da operação, logo que ela estivesse em condições
de perceber. Ela processou a informação como se fizesse parte das instruções
para a sua recuperação – a nova forma de viver, e, ao mesmo tempo, uma morte
anunciada.
Quem ela era, quem ela não era mais, definiu as nossas vidas. Anos mais
tarde, durante um programa de intercâmbio internacional tentei explicar o que
tinha acontecido ao meu formador, Shun. Estudava as técnicas de queima do cedro
que tenho usado desde então – e vivia com a sua família. A bolsa de estudo
tinha sido oferecida pelo Centro Malin; o seu diretor tinha providenciado seis
estágios extraordinários a jovens artistas da organização “At Home” com
criadores de todo o mundo. Estava numa vila nos arredores de Kyoto, rodeada
pela enorme floresta cor de chumbo.
O Shun e eu tornámo-nos amigos discretos ao longo dos meses. Comia com a
família e ofendia-os delicadamente com a minha ignorância e ausência de boas
maneiras, reproduzia música para os seus filhos ouvirem nos auriculares. O
trabalho de Shun era excecional, muito para além da carpintaria – fazia também
painéis para os edifícios tradicionais, e criava esculturas densas e negras que
eram vendidas em todo o mundo. Fui a sua primeira estagiária ocidental, que
estava a tentar aprender os segredos do uso de tubos de fogo e resinas, e a
tentar fugir ao espartilho das belas artes. O Inglês de Shun era bom; ele tinha
estudado na Califórnia antes de herdar o negócio do pai. Irritei-o e
entretive-o a maior parte do tempo. Tinha estado a me ensinar como usar a escova
de arame em revestimentos queimados a carvão com o intuito de revelar a bela
estrutura subjacente, e quando lhe falei da Naomi, fez uma pausa.
Essa palavra, identidade, disse, acabou de chegar aqui. É uma
palavra singular. Não conseguimos traduzi-la.
A sua personalidade única, Shun. Sabe o que quero dizer. O seu
carácter, a sua essência como Naomi!
Era uma jovem com uma pós-graduação em Arte, a tentar me avaliar e a
desenvolver uma experiência pessoal. Estava perdida neste lugar estranho,
calmo, diferente – uma gaijin, uma não Japonesa. O Shun ergueu uma das
suas mãos para a floresta onde os cedros estavam em fileiras iluminadas de
verde.
Ela é a sua mãe. Não pode perder a sua essência, se não está separada.
Parecia, pois, uma bela negação do conceito.
…