Isso agora já não sei
- Público - Edição Lisboa
- Miguel Esteves Cardoso
Numa coisa somos todos mal-educados: não sabemos quando parar. Se alguém nos faz um favor, em vez de o aceitar e agradecer, esticamos a corda, a ver se ainda nos faz outro. Eu que o diga: do uso ao abuso vai um saltinho.
Fui a uma aldeia à procura de uma “livraria online”: uma casa onde alguém tem livros para vender. Toquei à campainha. Nada. Vi uma senhora que estava a olhar para mim, possivelmente a pôr-se a jeito para ser interrogada. Mas, como eu não lhe fiz pergunta nenhuma, ela adiantou: “Não está ninguém.”
“É aqui que vive um senhor que costuma vender livros?”, perguntei.
“É, é”, respondeu a senhora, “ele saiu há bocadinho.”
Aqui, eu deveria ter agradecido a informação que aquela boa alma me tinha dado. Tinha confirmado que era ali a livraria que eu queria visitar e que o dono estava por lá. Mas fui ganancioso e quis abusar: “Sabe quando é que ele volta?” E aí ela não perdoou, usando uma das nossas mais preciosas fórmulas: “Isso agora já não sei!”
Na polícia, ensinam os graduados a fazer perguntas até elas derraparem, ou baterem no fundo. Só assim se sabe que o interrogado já despejou tudo o que tinha para despejar. O esforço para obter uma boa descrição física de um bandido só acaba quando a testemunha não se lembra da cor exacta das peúgas. Mas isso não é boa educação: é luta contra o crime.
O “isso agora já não sei” é, em si, um sinal de extrema boa educação. O que a senhora gostaria de dizer é: “Já agora, peça para me saltar para as costas, para eu o levar de cavalitas ao café onde o homem deve estar a beber a bica.”
A senhora voluntariou-se, ofereceu o tempo e a sabedoria dela, para me facilitar a vida. Eu não lhe pago por isso, mas, mesmo assim, acho que tenho o direito de a esmifrar até ela tossir toda a informaçãozinha que contiver.
“Isso agora já não sei” significa: “Vocês, os da cidade, são todos iguais: chegam aqui, à procura de merdas que não interessam a ninguém, e tratam-nos como se fôssemos vossos caseiros.”
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