sábado, 8 de março de 2025

Vivaldi e a sua música!

 ANTONIO VIVALDI – 346 anos de seu nascimento

Dia 4 de março, celebrámos os 346 anos de Antonio Lucio Vivaldi, o virtuoso do barroco, o mestre dos violinos, o arquiteto sonoro que transformou a natureza em música. Vivaldi não foi apenas um compositor; foi um visionário cuja obra transcendeu o tempo, ressoando até hoje com a mesma intensidade de quando suas mãos regeram as cordas e os coros que lhe deram voz.
Nascido em 4 de março de 1678, na esplendorosa Veneza, Vivaldi cresceu cercado pela música. Seu pai, violinista talentoso, introduziu-o no mundo das melodias e harmonias que mais tarde marcariam sua genialidade. Ordenado padre, ganhou o apelido de Il Prete Rosso, o Padre Ruivo, mas sua verdadeira vocação sempre esteve entre partituras e concertos.
Com uma maestria incomparável, Vivaldi revolucionou o concerto barroco, conferindo-lhe dinamismo e expressividade inigualáveis. Sua obra-prima, As Quatro Estações, é um tributo à natureza, onde cada nota descreve a fluidez da vida: a alegria da primavera, a plenitude do verão, a melancolia do outono e a fúria gélida do inverno.
Mais que um compositor, Vivaldi foi um narrador da existência humana e de seus ciclos, imortalizando emoções em cada compasso. Seu legado, indestrutível e eterno, ecoa nos corações de todos que compreendem que a música não é apenas som, mas um elo entre a alma e o infinito.
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Breve Ensaio sobre a autocegueira

 A cegueira para consigo mesmo é, talvez, uma das mais intrigantes condições da existência humana. Assim como não percebemos o peso que carregamos, pois ele se torna parte da própria experiência corporal, tampouco nos damos conta dos nossos próprios defeitos, uma vez que estes se integram à estrutura mesma do nosso ser. O que é constante dissolve-se na familiaridade e, paradoxalmente, torna-se invisível.

Essa incapacidade de perceber a própria carga não é mero acidente da percepção, mas uma consequência inerente à nossa relação com o mundo e conosco mesmos. O peso de um corpo só é notado quando submetido a uma mudança abrupta, uma elevação repentina, um deslocamento súbito, uma força contrária que nos recorda de sua presença. De modo análogo, os defeitos humanos emergem à consciência apenas quando são confrontados, seja por uma experiência transformadora, seja pelo olhar impiedoso do outro, que nos devolve uma imagem que não reconhecemos e, por isso mesmo, rejeitamos.
O sujeito é, por natureza, um observador externo e um observador parcial de si mesmo. A mente humana é constituída de tal modo que vê o mundo de dentro para fora, interpretando-o a partir de seu próprio ponto de vista. Nesse processo, o que se encontra próximo demais, como nossos próprios vícios, falhas e limitações, escapa ao foco. Se há algo de insidioso nessa dinâmica, é justamente o fato de que não apenas deixamos de perceber nossos defeitos, mas tendemos a considerar sua ausência como certa, enquanto nos tornamos peritos em identificar os deslizes alheios.
Essa assimetria remete à antiga máxima socrática da ignorância de si mesmo, que ressoa ao longo da tradição filosófica. Platão, ao apresentar o mito da caverna, ilustra a condição do homem que, imerso nas sombras da ilusão, desconhece sua própria limitação perceptiva. Nietzsche, por sua vez, denuncia o autoengano como uma estratégia da vontade de poder, na qual o sujeito mascara suas fraquezas e as projeta sobre o outro. Freud, no campo da psicanálise, revela o mecanismo da resistência, que impede o indivíduo de reconhecer aspectos reprimidos de sua própria psique.
O problema, no entanto, não se resolve apenas com a tomada de consciência da ilusão. Pois, mesmo ao admitirmos a possibilidade de sermos cegos para nossos próprios defeitos, isso não nos garante a clarividência necessária para discerni-los. A consciência de uma limitação não equivale à sua superação, pelo contrário, pode torná-la ainda mais complexa, pois agora estamos presos na armadilha da dúvida sobre aquilo que julgamos saber sobre nós mesmos.
Diante desse dilema, qual seria o caminho para uma autoconsciência mais lúcida? A resposta, talvez, resida na disposição para o confronto com o outro e com a alteridade. Se não podemos enxergar nosso próprio peso por conta própria, podemos, ao menos, reconhecer sua presença por meio do impacto que ele exerce sobre aqueles que nos rodeiam. A verdade sobre nós mesmos raramente se revela no espelho, mas sim no reflexo que encontramos nos olhos do outro, no incômodo que despertamos, nas reações que provocamos, nas palavras que nos são ditas e que, por vezes, preferimos ignorar.
O homem que busca o autoconhecimento precisa, portanto, cultivar a humildade da incerteza, a coragem da autoindagação e a disposição para aceitar o desconforto da verdade. A maior ilusão não está na ignorância dos próprios defeitos, mas na convicção de que já os conhecemos todos. Pois, como o peso que carregamos sem notar, há sempre algo em nós que, por ser demasiado próximo, nos escapa, e é justamente nesse ponto cego que reside o mistério mais profundo da nossa existência.
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4

Conta-me tudo - Elizabeth Strout

 

★★★★

CONTA-ME TUDO

Elizabeth Strout

Alfaguara, 2025, trad. de Tânia Ganho, 384 págs., €19,95

Romance

“Conta-me Tudo”, de Elizabeth Strout, cruza as duas grandes personagens da autora num romance próximo de um policial

A obra de Strout configura-se sobretudo em torno de duas personagens icónicas: Lucy Barton e Olive Kitteridge (vencedor do Pulitzer e adaptado a minissérie). Em torno destas protagonistas, de personalidades bastante díspares, compõem-se assim os seus romances, que podem ser lidos em série ou autonomamente, pois a autora cria obras únicas, que nada perdem lidas fora de sequência ou de forma isolada. É outono na vila de Crosby, no Maine.



Também outonais são as vidas de Olive, quase com 90 anos, e Lucy, agora reconciliada com o ex-marido. Ambas, cada uma sozinha à sua maneira, enfrentam o declínio da velhice e da solidão. Mas contradizem esse ocaso com a vivacidade com que partilham memórias e impressões sobre vidas enganosamente comuns das pessoas que as rodeiam, com quem se cruzaram, e de outros que nem conhecem. Dos fios narrativos que entretecem, e por entre os quais parecem subsumir-se, há uma história que ressalta, conferindo nova cor ao estilo habitual da autora, numa natureza próxima do policial. Bob Burgess, amigo (e apaixonado) de Lucy, advogado, procura defender Matthew Beach, acusado de assassinar a própria mãe — um artista solitário e enigmático, pouco querido pela comunidade, que, como sempre, conta todo o tipo de histórias a seu respeito. Em “Conta-me Tudo”, Strout surpreende ao cruzar as suas duas grandes personagens. Além disso, surge ainda aqui, discretamente, Isabelle (do seu primeiro romance). O título faz jus à estrutura narrativa do romance e traduz a maturidade romanesca e ousadia da autora, ao produzir uma obra que ganha vivacidade a partir das intrincadas histórias de vida, quase sempre banais (e não são sempre banais as vidas humanas?), que aqui se sucedem, a irromper por entre as páginas, sem intenção aparente ou fio condutor, tão espontaneamente como brotam das conversas livremente trocadas entre Lucy e Olive.

 

06 março 2025 22:57

Paulo Nóbrega Serra in "Revista jornal "EXPRESSO"


Blind Tom e o seu talento musical!

 Em 1849, numa plantação na Geórgia, nasceu uma criança que parecia destinada a ser esquecida pela história. Thomas Wiggins, mais tarde conhecido como Blind Tom, veio ao mundo numa época em que ser cego significava ser considerado inútil no cruel sistema esclavagista do sul dos EUA. A sua vida começou com rejeição: ele não podia trabalhar nos campos, então o seu dono pensou em se livrar dele. Mas o destino tinha outros planos.

Desde cedo, Tom demonstrou um fascínio obsessivo por sons. Enquanto outras crianças brincavam ou trabalhavam, ele passava horas ouvindo o vento nas árvores, a chuva a gotejar ou o ranger das madeiras da casa. Qualquer barulho parecia apanhá-lo num mundo só seu.
Um dia, quando tinha quatro anos, Tom encontrou um piano na casa do seu mestre, James Bethune. Para surpresa de todos, sem ter recebido uma única lição, sentou-se e começou a tocar. No início, os sons eram caóticos, mas rapidamente começou a imitar as melodias que ouvia na casa, com uma precisão impossível para alguém que nunca tinha tocado um instrumento.
Bethune, ao perceber que tinha um prodígio nas suas mãos, decidiu explorá-lo. Treinou-o com professores de música e começou a levá-lo em turné, apresentando-o como um fenómeno da natureza. Com o tempo, Tom foi enchendo teatros por toda a América e Europa. Ele podia ouvir qualquer peça musical uma vez e repeti-la nota a nota, até peças complexas de compositores como Beethoven ou Chopin. Mas seu talento ia além da simples imitação: improvisava, compunha e dava à música uma alma própria.
As pessoas vinham em massa para o ver. Não só porque ele era um virtuoso, mas porque a sua forma de tocar era visceral, como se a música falasse através dele. Diz-se que podia imitar com o piano qualquer som que ouvisse desde o treinar dos pássaros até o estrondo de uma tempestade.
No entanto, a sua vida nunca foi inteiramente sua. Apesar da fama e do dinheiro que ele gerava, ele nunca foi livre. Os seus ganhos iam parar à família Bethune, e Tom, com uma mentalidade infantil devido ao que hoje poderia ser diagnosticado como autismo, nunca compreendeu totalmente a exploração a que estava sujeito. Ele passou a vida sendo transferido de um lado para o outro, tocando em cenários deslumbrantes, mas sem ter controle sobre o seu próprio destino.
À medida que envelheceu, a fama de Blind Tom diminuiu, embora o seu talento nunca diminuísse. Faleceu em 1908, tendo tocado para presidentes, músicos de renome e para milhares de espectadores que ficaram maravilhados com seu dom.
Hoje, o seu legado continua vivo. A sua história inspirou músicos como Elton John, que compôs a música The Balad of Blind Tom em sua homenagem. E embora o seu nome não seja tão lembrado quanto o de outros génios musicais, a sua história é um testemunho do poder da arte, da resiliência e do mistério do talento humano.
Blind Tom não via o mundo, mas ouvia-o de uma maneira que mais ninguém conseguia. E através da sua música, conseguiu que outros também o ouvissem.

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