sábado, 8 de março de 2025

Breve Ensaio sobre a autocegueira

 A cegueira para consigo mesmo é, talvez, uma das mais intrigantes condições da existência humana. Assim como não percebemos o peso que carregamos, pois ele se torna parte da própria experiência corporal, tampouco nos damos conta dos nossos próprios defeitos, uma vez que estes se integram à estrutura mesma do nosso ser. O que é constante dissolve-se na familiaridade e, paradoxalmente, torna-se invisível.

Essa incapacidade de perceber a própria carga não é mero acidente da percepção, mas uma consequência inerente à nossa relação com o mundo e conosco mesmos. O peso de um corpo só é notado quando submetido a uma mudança abrupta, uma elevação repentina, um deslocamento súbito, uma força contrária que nos recorda de sua presença. De modo análogo, os defeitos humanos emergem à consciência apenas quando são confrontados, seja por uma experiência transformadora, seja pelo olhar impiedoso do outro, que nos devolve uma imagem que não reconhecemos e, por isso mesmo, rejeitamos.
O sujeito é, por natureza, um observador externo e um observador parcial de si mesmo. A mente humana é constituída de tal modo que vê o mundo de dentro para fora, interpretando-o a partir de seu próprio ponto de vista. Nesse processo, o que se encontra próximo demais, como nossos próprios vícios, falhas e limitações, escapa ao foco. Se há algo de insidioso nessa dinâmica, é justamente o fato de que não apenas deixamos de perceber nossos defeitos, mas tendemos a considerar sua ausência como certa, enquanto nos tornamos peritos em identificar os deslizes alheios.
Essa assimetria remete à antiga máxima socrática da ignorância de si mesmo, que ressoa ao longo da tradição filosófica. Platão, ao apresentar o mito da caverna, ilustra a condição do homem que, imerso nas sombras da ilusão, desconhece sua própria limitação perceptiva. Nietzsche, por sua vez, denuncia o autoengano como uma estratégia da vontade de poder, na qual o sujeito mascara suas fraquezas e as projeta sobre o outro. Freud, no campo da psicanálise, revela o mecanismo da resistência, que impede o indivíduo de reconhecer aspectos reprimidos de sua própria psique.
O problema, no entanto, não se resolve apenas com a tomada de consciência da ilusão. Pois, mesmo ao admitirmos a possibilidade de sermos cegos para nossos próprios defeitos, isso não nos garante a clarividência necessária para discerni-los. A consciência de uma limitação não equivale à sua superação, pelo contrário, pode torná-la ainda mais complexa, pois agora estamos presos na armadilha da dúvida sobre aquilo que julgamos saber sobre nós mesmos.
Diante desse dilema, qual seria o caminho para uma autoconsciência mais lúcida? A resposta, talvez, resida na disposição para o confronto com o outro e com a alteridade. Se não podemos enxergar nosso próprio peso por conta própria, podemos, ao menos, reconhecer sua presença por meio do impacto que ele exerce sobre aqueles que nos rodeiam. A verdade sobre nós mesmos raramente se revela no espelho, mas sim no reflexo que encontramos nos olhos do outro, no incômodo que despertamos, nas reações que provocamos, nas palavras que nos são ditas e que, por vezes, preferimos ignorar.
O homem que busca o autoconhecimento precisa, portanto, cultivar a humildade da incerteza, a coragem da autoindagação e a disposição para aceitar o desconforto da verdade. A maior ilusão não está na ignorância dos próprios defeitos, mas na convicção de que já os conhecemos todos. Pois, como o peso que carregamos sem notar, há sempre algo em nós que, por ser demasiado próximo, nos escapa, e é justamente nesse ponto cego que reside o mistério mais profundo da nossa existência.
May be art

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