sábado, 6 de agosto de 2022

 

Apontamentos sobre…

como escrever um romance

Sara Freeman

Tradução: Ivo Eduardo Correia 06-08-2022

  Há uma espécie de amnésia necessária que se instala quando se termina de escrever um romance. Como o parto, deve-se esquecer; o futuro exige isso de nós. Se nos lembrássemos, se realmente nos lembrássemos, então certamente não faríamos isso de novo. Ou talvez a própria experiência de escrever um romance seja uma espécie de esquecimento sustentado, uma fuga controlada.

  Lembro-me de um ensaio de John Berger, About Looking, em especial o capítulo Seker Ahmet e a Floresta. Berger, no seu ensaio, examina repetidas vezes o quadro de Ahmet de finais do século XIX, que retrata num jogo assombroso de perspetiva, a floresta, como paisagem clássica – cena contida com as suas bordas visíveis à distância – e uma floresta em toda a sua obscura intratabilidade vivenciada não de fora, mas de dentro, por um lenhador e seu burro passando por ela, ou como Berger sugere, engolidos por ela. “A atração e o terror da floresta,” escreve Berger, “é como nos vemos nela, como Jonas na barriga da baleia. Embora tenha limites, estamos cercados por ela. Agora esta experiência, que é a de qualquer pessoa familiarizada com florestas, depende de como nos vemos com visão dupla. Fazemos o nosso próprio caminho pela floresta, e, simultaneamente, vemo-nos, como de fora, engolidos por ela.”

  Esta “visão dupla” é certamente uma descrição adequada de como se perder dentro do mundo do seu próprio romance – imersão total e consciência simultânea dos limites dessa imersão. Muitas vezes senti, ao escrever o meu romance Marés, que a simultaneidade da atenção necessária para escorar esse mundo imaginário, estar ao mesmo tempo inteiramente dentro e engolida pelas frases e pela sua atmosfera, e também muito fora delas, consciente da boca deglutindo, correspondia a um casamento quase impossível de submissão e controle.

  Pareceu-me importante que a descrição de Berger da condição existencial da floresta, ao mesmo tempo insondável e circunscrita, seja aquela vivenciada por aqueles que estão “familiarizados com a floresta”. E então os lenhadores que o são pela primeira vez?

  Embora Marés seja o meu primeiro romance publicado, não é, de facto, o primeiro que escrevi. À beira dos trinta anos trabalhei noutro romance durante três anos. Senti-me muito apaixonada por esta história, pelo seu potencial. Mas por cada passo experimental que dava, tinha de fazer um novo rascunho, por isso, sentia-me completamente perdida, tinha pouco para conter os meus esforços. Ao não estar familiarizada com florestas, não tinha noção dos seus limites necessários. Trabalhei sem saber o que fazer, completamente do interior, aperfeiçoando frases e cenas, sendo engolida por uma paisagem interior, sem noção de um plano geral, uma forma que pudesse conter tudo o que esperava alcançar. No final, o livro, as suas múltiplas perspetivas, os seus capítulos quase sem ligação entre si, não coalesceram. Fiquei, em vez disso, com três grupos de árvores, separadas umas das outras a uma distância arbitrária – não uma floresta.

  Identifiquei, já muito tarde no processo, o que Rachel Cusk, no seu livro de memórias Aftermath, chama de falha no plano. Ao descrever a sua própria experiência de “escrever um romance de forma errada”, ela escreve: “O problema geralmente está na relação entre a história e a verdade. A história tem de obedecer à verdade, ela está para a verdade, como as roupas estão para o corpo. Quanto mais justo o corte, mais agradável é o efeito.” Cheguei à conclusão que “o corte” aqui significa não apenas a necessária contenção da verdade pela história, mas também a própria forma que a história deve tomar, o artificio vital da forma. Pensava, nessa altura, de forma ingénua, que se simplesmente escrevesse com sinceridade sobre as minhas personagens cuidadosamente imaginadas, conseguiria escrever um romance. Como num daqueles sonhos de ansiedade mais prosaicos, chegava ao palanque, pronta para fazer o meu discurso bem-intencionado, olhava para baixo, apenas para me aperceber que me tinha esquecido de vestir as minhas roupas.

  Lamentei não escrever durante um ano. Esqueci-me.

  E, depois de ter esquecido, tentei novamente. Uma personagem, desta vez, uma história bem simples, uma mulher que deixa a sua vida para trás após uma série de ruturas irreparáveis. Por outras palavras, uma floresta mais pequena, na qual suspeitava que poderia me perder, sem me perder completamente. Estaria a mentir se dissesse que correu bem. Ainda não sabia como escrever um romance. Criei limites artificiais. A história na sua primeira interação moveu-se, como um pendulo, do passado ao presente dando o mesmo peso a ambos, sem qualquer razão aparente – uma forma que não se deslocou do interior, mas imposta do exterior, um ato de vontade indesejado. Mas segui em frente, como o burro no quadro de Seker Ahmet, leal ao lenhador que tinha esperança de me vir a tornar. Quando reli o rascunho meses mais tarde, encontrei, em todas as páginas, apenas um punhado de frases que valia a penar guardar. Fiquei arrasada, ou com raiva – talvez ambas.

  Recusei continuar, pura teimosia. Pensei em desistir.

  E, no entanto, tinha recuperado da minha humilhação – quanto trabalho e quão pouco parecia aproveitável – Apercebi-me que tinha a minha personagem. E, talvez mais importante, tinha algumas frases, doze talvez, tão estranhas, mas para mim tão certas, pareciam ter sido escritas por uma escritora diferente, uma em que eu podia me querer tornar.

  Voltei várias vezes ao alerta de Annie Dillard na sua obra The Writing Life: “O processo não importa; apague os seus rastos. O caminho não é a obra. Espero que os vossos rastos tenham crescido. Espero que os pássaros comam as migalhas; espero que atire tudo fora e não olhe para trás.” Fiz isso simplesmente. Abri um novo documento, e escrevi, mantendo apenas algumas frases estranhas que guardei na minha mente, a sua urgência deslocada, e muito rapidamente uma floresta emergiu, real, atraente e aterrorizante. E depois algo ainda mais inesperado aconteceu: enquanto escrevia estas novas e estranhas frases – minhas, mas também não, que em sua estranha autonomia pareciam se escrever a elas próprias – estava consciente, também, das bordas que ganhavam forma à volta do que eu escrevia, uma sensação do todo de alguma forma a tomar posse a partir de dentro, e cercando os meus esforços do lado de fora. Não só a história encontrou uma forma que capturou a sua verdade, a verdade da história emergiu da sua própria forma, do som e da cadência das frases, a sua colocação solitária na página. Tinha encontrado a minha visão dupla.

  Perto do fim, não sabia se adorava o que tinha escrito, mas sabia que tinha escrito algo, ao mesmo tempo habitável, um lugar com uma atmosfera muito particular, um jogo sinistro de sombra e luz, e algo com uma materialidade externa, uma forma que era coerente o suficiente para ser chamada de história.

  Nestes dias, persigo a periferia de uma nova floresta, atraída, apavorada. Por agora, tenho a esperança de ter esquecido apenas o suficiente para considerar voltar a fazê-lo.

 

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

 

Naomi

Sarah Hall – tradução Ivo Eduardo Correia

Quando tinha oito anos a minha mãe morreu e a Naomi apareceu. O meu pai ainda vivia connosco nessa altura; tínhamos uma casa na orla da cidade, numa das ruas ingremes que levam ao farol, de onde se vê as montanhas do interior. Estávamos perto do Natal. Os cumes estavam cobertos de neve e o ar frio e rarefeito. Estávamos às compras, presentes de Natal e o meu pai tinha trazido o carro – a casa de bonecas que queria era bastante grande, demasiado grande para ser levada à mão, por isso tinha a certeza que me a iam comprar. A minha mãe tinha estado a se queixar o dia inteiro de uma dor de cabeça. Em cada loja que entrávamos ela fazia uma cara de dor.

  Estas luzes tão brilhantes.

  Ela continuava a arrastar os pés e a se sentar, esfregando a testa. Tínhamos estado na antiga biblioteca cívica, e, pouco habitual nela, não levou nenhum livro emprestado. O meu pai estava preocupado.

  Porque é que saíste de casa com essa enxaqueca? Queres que te leve a casa?

  De regresso ao carro, ela tropeçou. O meu pai ia um pouco à frente para ligar o carro e o aquecimento. Ele não viu. Ela perdeu o equilíbrio e caiu no pavimento, ajoelhou-se por uns instantes na neve enlameada, depois inclinou-se e sentou-se.

  Adam, ela chamou pelo meu pai. Onde está a Edith? Está contigo?

  Ela parecia muito calma. O seu discurso era lento.

  Adam, não consigo vê-la.

  Achei que ela estava a começar um daqueles jogos interessantes – ela conseguia ser parva e brincalhona. Eu não estou aqui, mamã, disse-lhe, andando por detrás dela. E, não estou aqui. Ela levantou uma mão e cuidadosamente apalpou o ar.

  Não consigo. Ver.

  Agachei-me à sua frente, olhei-a fixamente, abanei a minha cabeça de um lado para outro. Os seus olhos não acompanhavam.

  Uma das iris parecia um planeta negro.

  Chamei o meu pai.

  O meu pai voltou para o nosso pé.

  Afasta-te, disse-me. O que é que se passa, Naomi? Porque é que estás sentada aí, estás a ficar toda suja?

  Ela levantou o braço e o meu pai pegou nela, levantou-a. Quando a largou, ela desequilibrou-se e quase caía de novo.

  Ele acompanhou-a ao longo do parque de estacionamento, abriu a porta do Volvo e ajudou-a a entrar para o banco de trás. A cada movimento ela perdia força, como se fosse um brinquedo que estava a ficar sem bateria. Permaneceu quieta no banco de couro vermelho, os seus olhos abertos e vazios.

  Vai à frente, o meu pai ordenou-me.

  Era a primeira vez que me deixavam ir no lugar do passageiro. Coloquei o cinto de segurança. Estava folgado, pois estava como se fosse para um adulto. O meu pai arrancou com o carro, conduzindo sem pressa e parando nos semáforos. Por qualquer razão, achei que fossemos a caminho de casa. Continuava a me virar para trás para ver a minha mãe como estava. Ela respirava de uma forma acelerada, as suas pálpebras começavam a descair. Ela tentou falar, mas as suas palavras eram sons sem nexo. Da sua garganta saía um som metálico. Olhei de novo, e a sua face estava cheia de baba.

  A mãe não está bem. Ela não está bem.

  Certo, obrigado, Edith, o meu pai disse-me.

  Não estava assustada. Ninguém no carro estava com receio do que se estava a passar.

  Agora vira-te e senta-te direita.

  Ele conduziu até à porta das urgências. Parou o carro e puxou o travão de mão.

  Fica aqui, ordenou-me.

  Também quero entrar.

   Não, disse.

   Mas quero ir com a mamã.

   Ele estendeu a mão sobre a alavanca de velocidades e deu-me uma palmada nas pernas, uma palmada desajeitada que atravessou a minha saia e os collants. Depois saiu do carro, entrou nas urgências e veio acompanhado por um auxiliar e uma cadeira de rodas. Tiraram a Naomi de dentro do carro e colocaram-na na cadeira de rodas. Observei-a a ser levada para dentro, o seu corpo a descair para o lado. Os meus olhos lacrimejavam, as lágrimas refratavam tudo, e, por breves instantes, havia duas mulheres descaídas em duas cadeiras de rodas, pisquei os olhos e uma delas desapareceu. O carro cheirava a azedo. Devido ao frio no exterior quando coloquei a palma da minha mão no vidro do passageiro os contornos ficaram visíveis. Uma ambulância parou ao lado do carro e os paramédicos descarregaram uma maca.

  Quando o meu pai voltou ao carro, não me pediu desculpa. Não disse nada. Estacionou o carro. E levou-me em silencio para dentro do edifício, a sua mão pousada nas minhas omoplatas.

  A rececionista emprestou-me livros infantis.

  Pareces uma menina esperta, ela disse. Aposto que consegues ler estes livros sozinha?

  Ouvia-a falar com os médicos, com o meu pai, ao telefone. Estavam a planear transferir a minha mãe para outro hospital o mais rapidamente possível. Enquanto o meu pai foi à casa de banho, dirigi-me discretamente à rececionista e perguntei-lhe se podia ver a minha mãe.

  Não, boneca, não podes, tem paciência. Ela está muito doente e precisa de ser operada.

  Qual é o problema? Perguntei-lhe. É a dor de cabeça?

  A rececionista disse que sim com a cabeça, mostrando-se satisfeita, já que eu tinha respondido a uma pergunta de escola acertadamente. Ela tem um coágulo de sangue no cérebro. Ora, já aqui está de novo …

  O som do helicóptero a se aproximar era inconfundível – as pás furiosas, o ar fazendo remoinho contra o edifício ao aterrar. De repente, apercebi-me que era muito grave. Os helicópteros eram usados para resgatar montanhistas que tinham se despenhado dos cumes. Eram usados no salvamento de vidas. Por uns instantes, achei que iriamos todos, estava iluminada de entusiasmo e medo; nunca tinha voado anteriormente. Mas, quase de seguida, o helicóptero levantou voo, mais barulhento do que nunca, parecia, os rotores gemendo, uma explosão de barulho ensurdecedor. Uns segundos depois parecia um drone distante.

  O meu pai levou-me para casa, fez-me torradas, e pediu-me para ir para a cama.

  Tens de ser uma menina grande, Edith. Fiquei olhando as estrelas cintilantes coladas no teto do meu quarto.

  Na manhã seguinte disse-me que a minha mãe tinha sido transportada de avião para Newcastle onde foi operada. Teria de permanecer no hospital várias semanas.

  Foi uma operação muito delicada. Tiveram de fazer algumas coisas, o que significa que ela não será a mesma durante algum tempo. Ela pode nem saber quem tu és.

  Ele estava a usar as mesmas roupas do dia anterior. Os seus olhos estavam inchados. A sua face parecia inchada e as suas feições estavam concentradas lá.

  Sim ela vai-me reconhecer, disse-lhe.

  Ele abanou a cabeça que sim.

  Ela está em coma. A mãe da Christine vem tomar conta de ti hoje.

  Passamos o Natal só os dois, comendo miseravelmente tarte de carne moída. A árvore ficou por decorar; apenas o seu cheiro era festivo e tranquilizador. Não houve casa de bonecas. O meu pai comprou-me um casaco à última da hora; o preço ainda lá estava. Na primeira oitava deslocou-se ao hospital outra vez. Os pais da Christine fizeram-me uma festa, deram-me chocolates e leite. A Christine perguntou-me se a minha mãe ia morrer. Menti-lhe e disse que a acompanhei no helicóptero. Quando o meu pai chegou para me vir apanhar, ouvi-o a falar em voz baixa com a mãe da Christine, enquanto fui buscar os meus sapatos e o casaco.

  Parece o Frankenstein, disse. Está mesmo horrível. Sempre que ele fazia o trajeto até ao hospital, perguntava-lhe quando é que a poderia ver.

  Ainda não, era tudo o que me dizia. Ela ainda não está bem. Ela não se lembra.

  Na minha primeira visita ao centro de reabilitação, a minha mãe estava sentada numa mesa fazendo um desenho. Tinha uma faixa de pelos no cabelo que continha uma extensa cicatriz com os pontos levantados parecendo uma lagarta. Um lado da sua face parecia repuxado e levantado. Fiquei à porta, demasiado amedrontada para me aproximar.

  Vai, o meu pai ordenou-me. Querias vir. Vou buscar um café.

  Ele não estava a olhar para a minha mãe, não a tinha cumprimentado.

  Ele afastou-se e caminhou pelo corredor. A minha mãe não parecia que tivesse se apercebido que eu estava lá. Ela vestia um pijama azul pálido com flocos de neve o que a fazia parecer mais nova. Uma enfermeira entrou no quarto atrás de mim.

  Deves ser a Edith. A tua mãe tem tido saudades tuas. Vem.

  Ela levou-me até à mesa, puxou uma cadeira e sentei-me. A enfermeira colocou carinhosamente um cachecol à volta da cabeça de aminha mãe e amarrou-o atrás, cobrindo o vergão roxo, curvo.

  Agora sim.

  Mas eu não consegui deixar de não ver a ferida horrível. O desenho era infantil, uma árvore ou uma figura. Parecia confusa com a linha que estava a desenhar, que direção seguir. Tirei o lápis da sua mão. Olhou para mim. O seu olhar era vazio, mas curioso, como um pássaro avaliando um objeto no chão. Acabei a linha, desenhei um ninho no galho com ovos pintados no seu interior. A sua boca abriu e fechou várias vezes, fazendo um estalido como se estivesse a humedecê-la. Com um esforço concentrado, quase físico disse, saa, no, mi. Olhei para a enfermeira que sorria. 

  O que é que ela está dizendo? Perguntei.

  A enfermeira pôs as mãos nos seu ombros para parar o movimento espásmico que estava a aumentar.

  Ela está a se apresentar. Está a dizer, sou a Naomi.

  A hemorragia tinha causado danos irreversíveis, e o procedimento trouxe as suas próprias consequências. Uma secção precisa do osso tinha sido serrada e removida, e o vácuo original do órgão rompeu. Os médicos tinham remendado o tecido, cortado o vaso, e o fluxo sanguíneo do cérebro foi redirecionado. Contra todas as previsões, a rutura não a tinha matado. A Naomi iria recuperar, lentamente, anatomicamente, mas algo fundamental foi interrompido durante a operação de reparação – a complexa biblioteca do pensamento, da memória, da emoção e da personalidade. Salvaram-na a vida, mas não a conseguiram salvar. O exame pós-cirúrgico revelou uma segunda protuberância, inoperável, muito difícil de lá chegar. Havia outra espada vermelha e macia suspensa dentro da sua cabeça. Deveriam lhe ter dito depois da operação, logo que ela estivesse em condições de perceber. Ela processou a informação como se fizesse parte das instruções para a sua recuperação – a nova forma de viver, e, ao mesmo tempo, uma morte anunciada.

  Quem ela era, quem ela não era mais, definiu as nossas vidas. Anos mais tarde, durante um programa de intercâmbio internacional tentei explicar o que tinha acontecido ao meu formador, Shun. Estudava as técnicas de queima do cedro que tenho usado desde então – e vivia com a sua família. A bolsa de estudo tinha sido oferecida pelo Centro Malin; o seu diretor tinha providenciado seis estágios extraordinários a jovens artistas da organização “At Home” com criadores de todo o mundo. Estava numa vila nos arredores de Kyoto, rodeada pela enorme floresta cor de chumbo.

  O Shun e eu tornámo-nos amigos discretos ao longo dos meses. Comia com a família e ofendia-os delicadamente com a minha ignorância e ausência de boas maneiras, reproduzia música para os seus filhos ouvirem nos auriculares. O trabalho de Shun era excecional, muito para além da carpintaria – fazia também painéis para os edifícios tradicionais, e criava esculturas densas e negras que eram vendidas em todo o mundo. Fui a sua primeira estagiária ocidental, que estava a tentar aprender os segredos do uso de tubos de fogo e resinas, e a tentar fugir ao espartilho das belas artes. O Inglês de Shun era bom; ele tinha estudado na Califórnia antes de herdar o negócio do pai. Irritei-o e entretive-o a maior parte do tempo. Tinha estado a me ensinar como usar a escova de arame em revestimentos queimados a carvão com o intuito de revelar a bela estrutura subjacente, e quando lhe falei da Naomi, fez uma pausa.

  Essa palavra, identidade, disse, acabou de chegar aqui. É uma palavra singular. Não conseguimos traduzi-la.

  A sua personalidade única, Shun. Sabe o que quero dizer. O seu carácter, a sua essência como Naomi!

  Era uma jovem com uma pós-graduação em Arte, a tentar me avaliar e a desenvolver uma experiência pessoal. Estava perdida neste lugar estranho, calmo, diferente – uma gaijin, uma não Japonesa. O Shun ergueu uma das suas mãos para a floresta onde os cedros estavam em fileiras iluminadas de verde.

  Ela é a sua mãe. Não pode perder a sua essência, se não está separada.

  Parecia, pois, uma bela negação do conceito.