Como não gostar de coisas: um manual de auto-ajuda
- Público - Edição Lisboa
- Rogério Casanova
De vez em quando, um amigo distraído ou um parente tresmalhado recomenda-me um qualquer produto cultural (um filme, um livro, uma série televisiva), vocalizando a sugestão com um despropositadamente confiante “acho que vais gostar”. Isto não acontece com frequência, mas acontece mais vezes do que o desejável (que seria zero). Nunca encorajei, nem compreendo, estes comportamentos descompensados. Não me lembro de gostar de nada mais ou menos desde 2012, e o reduzido catálogo das coisas de que gosto foi quase totalmente formado entre os 16 e os 25 anos (a idade correcta para gostar de coisas). Desde então, a minha posição dominante sobre as coisas é não gostar delas.
Não gostar de coisas é um talento e, como qualquer talento, pode ser treinado e aperfeiçoado. Neste ponto, não é difícil imaginar a reacção de quem já está habituado a não gostar de coisas e, portanto, não gostou da frase anterior: responderá que não gostar de coisas é fácil, e qualquer idiota pode torcer o nariz perante um quadro ou suspirar o seu enfado ao longo de um filme. Mas não gostar de coisas não pode ser uma operação apenas reactiva — um reflexo, um acidente fisiológico — tal como não deve ser uma postura artificial, nem uma provocação, nem um alicerce identitário. Deve ser algo mais raro, e mais puro: uma prática refinada, metódica e consciente. Isto não é cinismo (que seria preguiçoso) nem niilismo (que seria adolescente), mas uma rigorosa disciplina metafísica. Eis algumas dicas.
Identifiquem a falha
Tudo, se examinado com atenção suficiente, tem um momento em que se atraiçoa. Um filme pode manter-se transpiradamente coeso durante 130 minutos até que um diálogo pedestre ou uma composição desleixada quebra o encanto. Um romance vai conter sempre palavras desnecessárias. Por que estão ali? O que nos dizem sobre as debilidades secretas do autor? Habituem-se a reconhecer estes momentos e a atribuir-lhes importância injusta e * desproporcional.
Cultivem o olhar impassível
É crucial reconhecer que gostar não é algo que fazemos, mas algo que nos é feito, uma invasão externa através de pontos fracos. O prazer começa na pupila. O olhar arregalado, a dilatação estúpida do deslumbramento — este é o rosto do submisso, ou do fanático já convertido. Num mundo desenhado para nos capturar a atenção, a primeira linha de defesa é a profilaxia do olhar desfocado, do cepticismo semiadormecido de quem já viu tudo antes, demasiadas vezes.
Militarizem o desconforto
Durante séculos, o ser humano acreditava que a verdade se adquiria com sofrimento. Os prisioneiros da caverna de Platão tiveram de ser arrastados aos gritos para a luz; os ascetas cristãos f agelavam-se para chegar ao Divino.
O prazer floresce mais facilmente num corpo bem alimentado, descansado, relaxado. Desestabilizem essa paz. Sentem-se em cadeiras desconfortáveis. Mantenham o volume da música sempre demasiado alto ou demasiado baixo para ser realmente satisfatório. Privilegiem o que é áspero, amargo, assimétrico, ineficiente. Quando lerem o último romance “importante” ou “incontornável”, não o façam com a segurança da edição cuidada, do papel macio, do candeeiro bem posicionado; usem um ebook descarregado ilegalmente, lido num telemóvel com retroiluminação, até ficarem com os olhos secos e raiados de sangue, e sofrerem um terçolho semestral. E tenham sempre uma janela aberta e vestuário insuficiente: o frio mantém-nos vigilantes e irritadiços.
Inventem um inimigo imaginário
Um exercício útil: perante um novo objecto cultural, não perguntem “Eu gosto disto?”, mas antes “Quem são as pessoas que gostam disto, e quanto é que as desprezo?”
Tentem evocar visualmente os que desfrutam das coisas que detestamos: uma hidra plácida e gelatinosa, com milhares de queixos caídos.
Não me lembro de gostar de nada mais ou menos desde 2012, e o reduzido catálogo das coisas de que gosto foi quase totalmente formado entre os 16 e os 25 anos (a idade correcta para gostar de coisas). O gesto não deve procurar o desdém pessoal e individualizado, mas sim a criação de um adversário abstracto, uma heurística de oposição, um compósito de cada aficionado sorridente, cada consumidor incapaz de discriminar, cada turista cultural que só se exprime através de um gargarejar constante de imerecida gratidão.
Não ser do contra
É o erro mais comum entre os aspirantes a não gostar de coisas. O aprendiz acredita que lhe basta assumir a posição oposta à da maioria. As massas aplaudem? Ele apupa. Os críticos comovem-se? Ele troça. Isto é o equivalente ao cachorrinho que ladra agressivamente para o próprio eco. Quem é meramente do contra nunca é livre: permanece agrilhoado à mesma cultura do entusiasta militante. Se se limita a dizer o contrário, continua a seguir-lhe os passos, a combater sombras projectadas por prazeres alheios. Não gostar de coisas implica a recusa em participar nesta dialéctica grosseira. O erro parte da crença vulgar e pueril de que um consenso está simplesmente errado, e que, portanto, deve ser disputado e derrubado. A mente sofisticada não argumenta contra o consenso — prefere redescrevê-lo como um delírio, o lodo coalhado de coerções invisíveis, o produto acumulado de in inércia, fadiga, e pavor de estar sozinho. Do lado de fora dessa bolha, cultivamos uma espé espécie de sinestesia negativa, cuida cuidadosamente calibrada, uma inver inversão dos sentidos que conv converta o mundo num lugar em que t tudo o que é aclamado nos queim queima a língua, toda a harm harmonia louvada nos perfura os tímp tímpanos, toda a imagem vene venerada nos chega através do filtro vermelho do rancor. Não se trata de repulsa reaccionária, nem de rebeldia adolescente, mas de uma recusa tão total que rejeit rejeita até o prazer fácil da sua próp própria postura. O que se deve faze fazer ao consenso, portanto, nã não é contestá-lo, mas torná-lo i irrelevante, negando-lhe sequer a dignidade da argumentação. Aqueles que gostam do que não gostamos nunca devem sentir que fazem parte de um debate. Devem sentir-se no interior de uma sala vasta, mas silenciosa, cujas paredes se dissolvem em vapor, onde a gravidade deixou de funcionar, onde toda a arquitectura do seu prazer nunca chegou a existir.
Nunca dar justificações coerentes
Uma das manobras mais traiçoeiras dos que gostam de coisas é exigir explicações. “Porque é que não gostas disto?”, perguntam, como se a recusa em partilhar o seu deleite fosse um enigma para ser decifrado. Mas qualquer explicação é uma armadilha. Racionalizar uma aversão é reduzi-la a um estatuto condicional, algo que poderia, noutras circunstâncias, ser modificado ou corrigido. O impulso para organizar todas as preferências num sistema com lógica interna consistente é, em si mesmo, um sintoma da doença. Não há nada mais suspeito do que alguém que consegue explicar com precisão porque adora todas as coisas que adora e detesta todas as coisas que detesta. As teorias unificadas do gosto são para burocratas: as chefias intermédias do edifício cultural. Só eles acreditam numa correspondência perfeita entre os seus princípios, a sua sensibilidade e o seu sistema nervoso. Há que resistir a isto, e abraçar o caos e a contradição. Autorizem-se a não gostar de coisas pelas mesmas exactas razões que, no passado distante, vos levaram a gostar de outras. Deixem que as vossas aversões sejam guiadas por caprichos erráticos, repulsas irracionais, vendettas pessoais inconscientes. Nunca expliquem nada a ninguém. A opinião mais medíocre de todas é a que se esforça por encaixar numa tabuada de outras opiniões.
Este é o caminho certo. Interiorizem estes princípios, apliquem estes métodos, e experimentem viver assim durante uns meses. Garanto que não vão gostar, o que, se bem se lembram, é o objectivo. Será a primeira de muitas vitórias.
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