quinta-feira, 16 de junho de 2022

 

Memórias de uma ilha

Tove Jansson & Tuulikki Pieitilä

 

Brunström falava às vezes do grande degelo. Ele costumava dizer “se não viste isso, então não viste nada”, e não estou a falar, neste momento, do gelo quando se quebra numa daquelas pequenas baías no interior do arquipélago.

O Tooti e eu decidimos que tínhamos de assistir a um desses momentos quando o gelo começa a quebrar, no entanto, levou alguns anos até que tivéssemos a oportunidade de lá irmos. Estávamos em março – um inverno tardio e uma primavera precoce.

Alugámos um hidrocóptero construído por Valter Liljeberg em Pellinge, feito de placa fina de madeira e reforçado com fibra de vidro. O motor era Chrysler. Na popa o hidrocóptero tinha um propulsor, separado da cabine dos passageiros pelas suspensões horizontais duma cama de metal rebatível – da marca Heteka.



Deixaram-nos levar apenas uma mochila, sentámo-nos com os joelhos encolhidos até ao peito. O motor pegou com um rugido, e o aparelho moveu-se ao longo do gelo a grande velocidade até que abrandou, afundando-se até à balaustrada e começou a chiar. Depois, deslizou para a frente muito devagar, engatinhou de volta ao gelo e avançou de novo. E continuámos nisto, aos repelões, durante todo o percurso até ao canal dos barcos, que estava cheio de blocos de gelo. O comandante saiu e deu um pontapé no bloco de gelo mais próximo, depois saltou de novo para dentro do aparelho, e o hidrocóptero virou o nariz do para um rumo diferente, fez um desvio e aí tudo correu bem. Voámos como o vento o último quilometro ao longo do gelo vítreo, escuro e transparente, deslizando sobre os baixios onde a floresta de algas castanhas ondulavam por baixo de nós.

Chegámos à ilha e o hidrocóptero regressou à base.

Quando entrámos na cabana sentimos logo aquele frio arrepiante que Brunström costumava designar por “a toca do lobo”, alguém tinha usado toda a lenha. Encontrámos algumas paletes de madeira na cave e usámos para nos aquecermos, e também aparas de madeira e descongelámos alguns toros que estavam cobertos de gelo.

Vibrámos de emoção pela mudança e pelas expectativas e corremos precipitadamente na neve aqui e ali e atirámos bolas de neve ao marco geodésico. Tooti construiu um trenó com finas tiras de madeira, e conduzimo-lo repetidamente ao longo do gelo desde o topo da ilha até ao extremo mais longínquo.

Quando nos cansámos desse jogo, sentámo-nos e fizemos o ponto da situação. O mar refletia a luz solar para onde quer que olhássemos. Foi aí que nos apercebemos do silêncio absoluto.

E que estávamos a sussurrar.  



E a longa espera chegou. Apoderou-se de mim um sentimento de desapego totalmente novo, ao contrário do isolamento, era apenas a sensação de ser um forasteiro, sem preocupação ou culpa sobre o que quer que fosse. Não sei como é que aconteceu, mas a vida tornou-se simples e fiz de tudo por ser feliz.

O Tooti fez um buraco no gelo para deixar o nosso lixo.

Tornámo-nos cada vez menos stressados, cada vez mais calmos e cumprimos as nossas tarefas diárias como se estivéssemos lá sozinhos. Era muito relaxante.

E uma noite aconteceu, mas muito longe da costa, provavelmente ninguém assistiu. Parecia um trovão distante ou um tiro de canhão. Corremos para o topo da ilha, mas o gelo no mar parecia igual em todas as direções. Estivemos à espera imenso tempo, ao frio glaciar, mas nada se passou, por isso, acendemos o lume na lareira, e fomos dormir.

Incapaz de esperar, quando o nosso próprio objetivo grandioso era esperar, é imperdoável.

O que é que eu estava a pensar quando estava no cimo do Vesúvio? Gostaria mesmo de saber. Quero dizer, lé estava ele a se comportar mal, e eu estava lá! Tinha 19 anos e tinha esperado toda a minha vida para assistir a uma montanha a cuspir fogo. A lua já estava no céu, os pirilampos também; a Terra estava incandescente – e o que foi que eu fiz? Obedientemente, regressei ao hotel no autocarro de turismo afim de tomar o meu chá e ir para a cama! Quem é que ocupa o seu tempo a dormir, quando algo está a acontecer finalmente. Poderia ter ficado a noite inteira e ter tido o Vesúvio só para mim.

Seja como for, dormimos de mais. Quando acordámos todo o oceano estava cheio de pedaços de gelo. Pedaços de gelo impressionantes flutuavam à deriva, levados pela suave brisa de sudoeste, esculturais, cintilantes, tão enormes como carros, catedrais, cavernas primitivas, tudo o que se possa imaginar. E eles mudavam de cor sempre que lhes apetecia – azul, verde e à noitinha, laranja. E de manhã cedo, cor-de-rosa.

O vento começou a soprar e os blocos de gelo começaram a chocar uns contra os outros, erguendo-se, baixando-se (como se estivessem numa orgia, de acordo com o Brunström).

Eles mudavam de aspeto continuamente e de uma forma fantástica em direção à derradeira transformação em água.

A água da lagoa permanecia parada, congelada até ao fundo, a sua enseada cheia de neve pura e intacta entre as rochas basálticas.

O Tooti dizia algo como “tudo fica muito bem quando é a cores” muitas vezes ao dia, mas para mim as cores mais puras e dignas continuam a ser o preto e o branco.


Traduzido por Ivo Eduardo Correia de Granta Magazine 

Este é um projeto de tempos livres. Sou um leigo nas lides da tradução, não tenho experiência nem Licenciatura nesta área. Gosto de desafios e de melhorar os meus conhecimentos linguísticos e literários. Sejam compreensivos!

16-05-2022

 

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