Memórias de uma ilha
Tove Jansson & Tuulikki
Pieitilä
Brunström falava às vezes do
grande degelo. Ele costumava dizer “se não viste isso, então não viste nada”, e
não estou a falar, neste momento, do gelo quando se quebra numa daquelas
pequenas baías no interior do arquipélago.
O Tooti e eu decidimos que
tínhamos de assistir a um desses momentos quando o gelo começa a quebrar, no
entanto, levou alguns anos até que tivéssemos a oportunidade de lá irmos.
Estávamos em março – um inverno tardio e uma primavera precoce.
Alugámos um hidrocóptero
construído por Valter Liljeberg em Pellinge, feito de placa fina de madeira e
reforçado com fibra de vidro. O motor era Chrysler. Na popa o hidrocóptero
tinha um propulsor, separado da cabine dos passageiros pelas suspensões
horizontais duma cama de metal rebatível – da marca Heteka.
Deixaram-nos levar apenas uma
mochila, sentámo-nos com os joelhos encolhidos até ao peito. O motor pegou com
um rugido, e o aparelho moveu-se ao longo do gelo a grande velocidade até que
abrandou, afundando-se até à balaustrada e começou a chiar. Depois, deslizou
para a frente muito devagar, engatinhou de volta ao gelo e avançou de novo. E
continuámos nisto, aos repelões, durante todo o percurso até ao canal dos
barcos, que estava cheio de blocos de gelo. O comandante saiu e deu um pontapé
no bloco de gelo mais próximo, depois saltou de novo para dentro do aparelho, e
o hidrocóptero virou o nariz do para um rumo diferente, fez um desvio e aí tudo
correu bem. Voámos como o vento o último quilometro ao longo do gelo vítreo,
escuro e transparente, deslizando sobre os baixios onde a floresta de algas
castanhas ondulavam por baixo de nós.
Chegámos à ilha e o hidrocóptero
regressou à base.
Quando entrámos na cabana
sentimos logo aquele frio arrepiante que Brunström costumava designar por “a
toca do lobo”, alguém tinha usado toda a lenha. Encontrámos algumas paletes de
madeira na cave e usámos para nos aquecermos, e também aparas de madeira e
descongelámos alguns toros que estavam cobertos de gelo.
Vibrámos de emoção pela mudança e
pelas expectativas e corremos precipitadamente na neve aqui e ali e atirámos
bolas de neve ao marco geodésico. Tooti construiu um trenó com finas tiras de
madeira, e conduzimo-lo repetidamente ao longo do gelo desde o topo da ilha até
ao extremo mais longínquo.
Quando nos cansámos desse jogo,
sentámo-nos e fizemos o ponto da situação. O mar refletia a luz solar para onde
quer que olhássemos. Foi aí que nos apercebemos do silêncio absoluto.
E que estávamos a sussurrar.
E a longa espera chegou.
Apoderou-se de mim um sentimento de desapego totalmente novo, ao contrário do
isolamento, era apenas a sensação de ser um forasteiro, sem preocupação ou
culpa sobre o que quer que fosse. Não sei como é que aconteceu, mas a vida
tornou-se simples e fiz de tudo por ser feliz.
O Tooti fez um buraco no gelo para
deixar o nosso lixo.
Tornámo-nos cada vez menos
stressados, cada vez mais calmos e cumprimos as nossas tarefas diárias como se
estivéssemos lá sozinhos. Era muito relaxante.
E uma noite aconteceu, mas muito
longe da costa, provavelmente ninguém assistiu. Parecia um trovão distante ou
um tiro de canhão. Corremos para o topo da ilha, mas o gelo no mar parecia
igual em todas as direções. Estivemos à espera imenso tempo, ao frio glaciar,
mas nada se passou, por isso, acendemos o lume na lareira, e fomos dormir.
Incapaz de esperar, quando o
nosso próprio objetivo grandioso era esperar, é imperdoável.
O que é que eu estava a pensar
quando estava no cimo do Vesúvio? Gostaria mesmo de saber. Quero dizer, lé
estava ele a se comportar mal, e eu estava lá! Tinha 19 anos e tinha esperado
toda a minha vida para assistir a uma montanha a cuspir fogo. A lua já estava
no céu, os pirilampos também; a Terra estava incandescente – e o que foi que eu
fiz? Obedientemente, regressei ao hotel no autocarro de turismo afim de tomar o
meu chá e ir para a cama! Quem é que ocupa o seu tempo a dormir, quando algo
está a acontecer finalmente. Poderia ter ficado a noite inteira e ter tido o
Vesúvio só para mim.
Seja como for, dormimos de mais.
Quando acordámos todo o oceano estava cheio de pedaços de gelo. Pedaços de gelo
impressionantes flutuavam à deriva, levados pela suave brisa de sudoeste,
esculturais, cintilantes, tão enormes como carros, catedrais, cavernas
primitivas, tudo o que se possa imaginar. E eles mudavam de cor sempre que lhes
apetecia – azul, verde e à noitinha, laranja. E de manhã cedo, cor-de-rosa.
O vento começou a soprar e os
blocos de gelo começaram a chocar uns contra os outros, erguendo-se,
baixando-se (como se estivessem numa orgia, de acordo com o Brunström).
Eles mudavam de aspeto
continuamente e de uma forma fantástica em direção à derradeira transformação
em água.
A água da lagoa permanecia
parada, congelada até ao fundo, a sua enseada cheia de neve pura e intacta
entre as rochas basálticas.
O Tooti dizia algo como “tudo
fica muito bem quando é a cores” muitas vezes ao dia, mas para mim as cores
mais puras e dignas continuam a ser o preto e o branco.
Traduzido por Ivo Eduardo Correia de Granta Magazine
Este é um projeto de tempos livres. Sou um leigo nas lides da tradução, não tenho experiência nem Licenciatura nesta área. Gosto de desafios e de melhorar os meus conhecimentos linguísticos e literários. Sejam compreensivos!
16-05-2022
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