domingo, 2 de fevereiro de 2025

Será que haverá volta a dar? - O Público 02-02-25

 

“Briturn”? Já há cartazes nas ruas

STEFAN WERMUTH/REUTERS

Cinco anos depois do Brexit, o Reino Unido precisa da União Europeia e a União Europeia precisa do Reino Unido

1.Passaram, no dia 31 de Janeiro, cinco anos sobre a entrada em vigor do acordo que formalizou a saída do Reino Unido da União Europeia (UE). Foram cinco anos alucinantes em que muita coisa mudou no mundo, na Europa e no próprio Reino Unido. Ou, por ouras palavras, o mundo em que o Brexit foi negociado e concretizado já não é existe.

Há coincidências que nos dizem muito. O referendo convocado pelo primeiro-ministro David Cameron para que os britânicos decidissem se queriam manter-se, ou não, na União Europeia ocorreu em Junho de 2016. Cameron convocou-o porque tinha quase a certeza de que o seu resultado seria a favor da UE, acreditando que resolveria de uma vez por todas as divisões que atravessavam os Conservadores e enfraqueceria o partido nacionalista de Nigel Farage, o arauto da saída. O resultado do referendo foi o contrário. O primeiro-ministro demitiu-se. Theresa May, que o substitui em Downing Street, ainda tentou negociar uma saída que não fosse radical. A entrada em cena de Boris Johnson, um líder populista que fez do “Brexit” a sua porta de entrada para a liderança do partido, venceu as eleições prometendo fechar rapidamente um acordo com Bruxelas, que representaria um corte radical com o passado. Tal como a campanha do referendo, os defensores do “Brexit” prometeram um mundo de vantagens para o Reino Unido, desde o controlo das fronteiras para pôr fim à imigração “descontrolada” até à descida do custo da habitação (que ainda não parou de aumentar), passando pela poupança de 350 milhões de libras enviadas anualmente para orçamento comunitário.

Em Novembro de 2016, as eleições presidenciais americanas tiveram um resultado que quase ninguém antecipara. Donald Trump, um empresário do imobiliário com um discurso errático e um comportamento anormal, derrotou Hillary Clinton, contra todas as expectativas. Era um defensor devoto do “Brexit” contra uma Europa que desprezava.

Cinco anos depois, onde estamos?

2. Donald Trump é, de novo, o Presidente dos Estados Unidos. O Labour, que batalhou pela permanência do Reino Unido na União, regressou finalmente ao poder. A economia do país estagnou. A imigração triplicou. Hoje, uma maioria dos britânicos vê com bons olhos uma aproximação a Bruxelas ou mesmo o regresso. A reeleição de Trump foi a última machadada na ilusão de que a alternativa à Europa era a special relationship com a América. Se somarmos o gigantesco impacto da invasão russa da Ucrânia nas condições de segurança da Europa democrática, a aproximação ao continente é vista pela opinião pública como uma inevitabilidade.

Do lado europeu, desfez-se a velha desconfiança em relação à “pérfida Albion” que, em alguns países, sobretudo em França, era vista como um travão a mais integração ou um “Cavalo de Tróia” da América. Face à ameaça russa e à deriva americana, o Reino Unido volta a ser indispensável. Nomeadamente, em matéria de segurança e defesa. O primeiro-ministro Keir Starmer já negociou um acordo de segurança com Berlim (Acordo de Trinity House), renovou o que já tinha com Paris antes do Brexit (Acordo de Lencastre House), que vai replicar com outros países. Já existe com os países bálticos e nórdicos uma Força Expedicionária conjunta.

Em Londres, o primeiro-ministro continua a dizer que não é preciso escolher entre Washington e Bruxelas, retomando a estratégia equidistante de Tony Blair, antes do Iraque. Teme que uma aproximação demasiado rápida possa dar força aos nacionalistas de Farage, cujo partido obteve um bom resultado nas eleições do ano passado. A sua ministra das Finanças, Rachel

Reeves, tem um discurso bastante mais ousado. Não tem medo de dizer que a saída é a primeira causa da quebra de crescimento da economia britânica nos últimos anos. Diz que pretender recuperar esse crescimento perdido com mais cooperação com Bruxelas.

Cálculos feitos por algumas instituições independentes avaliam em 30 a 40 mil milhões de perdas anuais com a saída do Mercado Único e do Mercado Comum, numa economia de mais de três biliões (triliões na língua inglesa) de libras. Para um referendo que foi ganho a prometer travar a imigração, os números ainda são mais gritantes. Em Junho de 2019, véspera da entrada em vigor do acordo, tinham chegado, num ano, 347 mil imigrantes de fora da UE; em Junho de 2024, atingiram um milhão. Houve, é verdade, uma redução dos imigrantes vindos da Europa. O problema é que isso teve consequências negativas em vários sectores, nomeadamente, nas Universidades e no Serviço Nacional de Saúde. Hoje, Bruxelas e Londres estão a discutir como voltar a facilitar o acesso dos estudantes europeus às universidades britânicas. Um estudo de Oxford sobre migrações, de 2022, conclui que os imigrantes europeus vinham para trabalhar. Os oriundos da Ásia do Sul e da África subsariana vêm sobretudo ao abrigo da reunião familiar crianças, mulheres e mais velhos.

Quando à special relationship, já restam escassas ilusões. Elon Musk foi a Londres apoiar Farage. J.D. Vance disse que o Governo do Labour “transformou o Reino Unido num país islâmico”. Trump não faz qualquer distinção entre Londres ou Bruxelas – são todos europeus, que se aproveitaram da América, seja na segurança, seja no comércio. Os únicos governos que aprecia são os populistas e nacionalistas. Lá estava Boris Johnson na sua tomada de posse. O Reino Unido é um dos mais firmes apoiantes da Ucrânia, incluindo em termos militares. Na sexta-feira, o Presidente americano anunciou a aplicação de taxas alfandegárias às importações europeias. Não se imagina que o Reino Unido fique de fora.

3. “A Grã-Bretanha nunca pareceu tão exposta, à deriva no Atlântico num mundo pleno de perigos”, escreveu o colunista do britânico Observer, Andrew Rawnsley. “Keir Starmer está confrontado com vários dilemas estratégicos que não se resolverão por wishful thinking.” Rawnsley citava um discurso do chefe das Forças de Defesa britânicas, Almirante Tony Radakin, no qual descreveu o ambiente de segurança como “mais contestado, mais ambíguo e mais perigoso” do que em qualquer outro momento da sua carreira. A guerra híbrida de Moscovo, que passa pela ingerência nas democracias, pela sabotagem e pela desinformação, coloca desafios completamente novos. “O Reino Unido é um dos principais alvos de ciberataques por agentes estatais e não estatais. O número dos que estão na parte superior de grau de severidade triplicou num ano, incluindo um visando hospitais.” E ninguém dirá que o Reino Unido não é dos países da NATO militarmente mais fortes.

Os desafios são comuns à Europa. A defesa passou a estar no centro da agenda europeia. António Costa preside amanhã a um Conselho Europeu informal para discutir a segurança e defesa, que terá como convidados o primeiro-ministro britânico e secretário-geral da NATO, Mark Rutte.

4. Em 2016, quando do referendo britânico e da primeira eleição de Trump, o mundo ainda era outro. A Rússia já tinha invadido o Donbass e anexado a Crimeia, sem que a Europa e os Estados Unidos (de Obama) fizessem grande coisa para dissuadir Putin. A China já era um enorme desafio estratégico, mas os europeus só invejavam o seu gigantesco mercado. A economia europeia estava a sair da Grande Recessão do início da década sem ter aprendido qualquer lição sobre os riscos dos grandes choques assimétricos. Trump ainda era uma relativa incógnita.

Hoje, dos dois lados do Canal da Mancha, caíram todas as ilusões. Cinco anos depois do Brexit, o Reino Unido precisa da União Europeia e a União Europeia precisa do Reino Unido. Para não ficaram isolados, divididos e “expostos” no Atlântico, num mundo que lhes é adverso. Às suas democracias, aos seus interesses estratégicos, à paz e a prosperidade com que se habituaram a viver. A maioria dos britânicos quer uma aproximação à Europa e desconfia dos Estados Unidos. Já foi lançado, entretanto, o movimento “Briturn”. É um bom sinal.

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