Duas
Mulheres Anónimas (Two Nameless Women)
Traduzido do Espanhol –
Sarah Booker
Traduzido por Ivo
Eduardo Correia
Conseguia ouvir a água a correr assim que coloquei a chave na fechadura.
Achei que a ia encontrar exatamente onde ela estava: na minúscula casa de
banho, sentada na beira da banheira, com as mãos sob o fluxo de água quente. Estava
a olhar fixamente para algo que eu não conseguia decifrar através da janela.
Olhava insistentemente. Apenas se apercebeu que eu estava lá, quando fechei a
torneira e apressadamente coloquei a toalha seca nas suas mãos quentes e
vermelhas. “Olhe o que fez,” murmurei, tentando repreendê-la. “Parecem frangos
recém depenados,” finalmente sorri, acariciando-as. Olhou para mim com um olhar
vazio. Depois, pestanejou, e, inclinando a cabeça, olhou para as suas mãos.
Levantou a direita até ao nível dos olhos, rodando-a para a inspecionar melhor.
“As mãos delas,” disse. “Eles cortaram as suas mãos.”
“Sim,” respondi enquanto, cuidadosamente, a levava em direção ao seu quarto de dormir. Depois de desligar a televisão ajudei-a a se sentar na cama para lhe tirar a roupa, calças largas e uma t-shirt de algodão e lhe vestir a camisa da noite de flanela com que costumava dormir. Fez-me sinal para lhe passar a escova do cabelo que estava em cima da comoda, e, assim que a segurou nas suas mãos, dedicou-se a escovar o seu longo cabelo grisalho. Parecia absorta, mais uma vez. A escova deslizava facilmente das raízes às pontas e depois fê-lo, novamente, uma vez mais.
“Desta vez eles também cortaram
as suas pernas,” murmurou, olhando subitamente para mim.
“Sim,” respondi-lhe. “Vi nas
notícias. Teremos de ter mais cuidado daqui para a frente,” concluí, dando-lhe
algumas palmadinhas nas costas e oferecendo-lhe alguns comprimidos. De seguida
fui à pequena cozinha e pus água a ferver. O tempo passa de forma estranha.
Quando a chaleira começou a chiar, um som que me lembra sempre a sirene da polícia,
não fazia a mínima ideia do que tinha estado a pensar. Fiz-lhe um chá de flor
de laranjeira porque sabia que era um dos seus preferidos.
“E cortaram-lhes o cabelo,
também,” disse-o como se fosse para si própria ao tomar o primeiro gole com uma
calma inusitada. Virou-se para olhar para mim, e, apercebendo-me que estava a
ser olhada, sorri para ela. Nunca sei o que realmente fazer nestas situações.
Quando desliguei a luz do quarto de dormir, a velha senhora já estava a dormir
sob os cobertores. A sua respiração constante, e as suas pestanas imóveis.
O edifício onde vivíamos era na
verdade sombrio, mas tinha a vantagem de ser central. Podíamos ir facilmente a
qualquer sítio sem precisar de carro, íamos de autocarro ou de metro quando
precisava de levá-la ao hospital para os exames de rotina. Existiam imensos
restaurantes na redondeza, de onde podíamos encomendar comida sem pagar a taxa
de deslocação. Existiam lavanderias, uma estação de correios e uma esquadra de
polícia. Consigo ver tudo isto das janelas do seu quarto andar. As luzes
vermelhas, os semáforos.
Naquela noite sentei-me um pouco
no seu cadeirão preferido antes de terminar a visita. Não sabia ao certo como é
que ela ocupava os seus dias, sozinha, trancada no labirinto da sua própria
cabeça, mas conseguia compreender as suas atividades nos indícios que ela
deixava para trás: a televisão ligada, a porta do frigorífico aberta, um par de
facas no balcão da cozinha. A sua família praticamente a esqueceu, visitavam-na,
de vez em quando, especialmente no seu aniversário. Ela recebia um cartão ou
dois ao longo do ano. Uma carta. Olhei pela janela, da mesma forma que a tinha
visto fazer tantas vezes. A cidade tremia lá fora. Dava essa impressão de
qualquer modo. Coloquei as pernas no divã e recostei-me no apoio de cabeça. As
rachas no teto formavam um mapa ou uma floresta de árvores retorcidas ou uma
rede de pesca onde um prisioneiro teria de lá cair. Fechei os olhos, como a
velha senhora, e achei que talvez estivesse tão cansada quanto ela. Ou tão
perdida. É mesmo necessário viver tanto? Abri os olhos e benzi-me antes mesmo
de me por em pé. No escuro, o apartamento parecia um museu. As fotografias. Os
tapetes. As cortinas. As colheres e os garfos. Os vasos. O papel de parede.
Cada objeto cuidadosamente preservado. Não tocar. A mesa. As cadeiras. Não pude
deixar de me perguntar quem é que acabaria por ficar com tudo isto no final.
Apanhei o saco plástico onde tinha um pão e fatias de fiambre para fazer uma
sandes. Depois de dar uma última olhadela no apartamento, saí e fechei a porta.
Desci as escadas devagar até ao segundo andar. Qual a duração da eternidade
medida em passos?
Na televisão continuavam a passar
a mesma notícia. As raparigas mortas. Os sinais de tortura. A pergunta
persistente sobre os seus nomes. Evitava olhar para as imagens, mas ouvia-os a
recontar os acontecimentos a partir da cozinha. Uma festa que correu mal, um táxi,
uma viagem para a eternidade. As sirenes da polícia interromperam os meus
pensamentos. A água a ferver. Ao barrar a maionese no pão, imaginava o céu azul
sobre os seus corpos. A luz solar, vertical como uma pá sobre a sua pele. A luz
solar quando choca com os ossos. As bocas, abertas. Todos aqueles dentes
preciosos. Caí para uma cadeira. Olhei para a parede. Com a faca ainda na minha
mão direita, inerte como a estátua que eu já me tornara, pensei como é que elas
não tiveram tempo de se sentirem cansadas. Pensei como teriam sobrevivido se
tivessem sido salvas, podiam descansar as pernas no couro rijo do divã mesmo no
centro de um quarto solitário.
…
Sem comentários:
Enviar um comentário