quinta-feira, 21 de julho de 2022

 


 

Tomb of Sand é um romance em hindi de 2018 do autor indiano Geetanjali Shree. Foi traduzido para o inglês pela tradutora norte-americana Daisy Rockwell. Em 2022, o livro se tornou o primeiro romance traduzido de uma língua indiana a ganhar o International Booker Prize.

 

 

Túmulo de Areia (Tomb of Sand)

Traduzido por Ivo Eduardo Correia

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  Um conto conta a si próprio. Pode ser completo, mas também pode ser incompleto, da forma como todos os contos são. Este conto particular tem uma fronteira e mulheres que vêm e vão como bem lhes apetece. Desde o momento em que existem mulheres e uma fronteira a história consegue se escrever a si própria. Até as mulheres que estão sós são suficientes. As mulheres são histórias em si, cheias de agitações e sussurros que flutuam ao vento e que se dobram a cada folha de erva. O sol poente reúne fragmentos de contos e transforma-os em lanternas brilhantes que ficam suspensas nas nuvens. Estas também farão parte da nossa história. O trajeto da história desenrola-se sem saber onde irá parar, virando ora para a direita, ora para a esquerda, às voltas e reviravoltas permitindo que tudo e alguma coisa se juntem à narração. Irá emergir de dentro de um vulcão, inchando silenciosamente enquanto o passado ferve no presente, trazendo vapor, cinzas, e fumo.

  Existem duas mulheres nesta história. Além delas, existem outras que apareciam e desapareciam, aquelas que continuavam a vir e a ir, aquelas que permaneciam sempre, mas que que não eram tão importantes, e aquelas que ainda não foram mencionadas, que não eram sequer mulheres. Por agora, digamos apenas que duas mulheres eram importantes, e destas uma estava a ficar mais pequena e a outra maior.

  Havia duas mulheres e uma morte.

  Duas mulheres, e uma morte. Quão bem iremos nos dar, nós e elas, já que todas nos sentamos juntas.

  Duas mulheres: uma mãe, uma filha, uma, crescendo para baixo e a outra, para cima. Uma ri e diz, estou a ficar mais pequena a cada dia que passa! A outra está triste, mas não diz nada quando se vê ficando maior. A mãe deixou de usar saris (traje típico da mulher indiana), agora que ela tem de enfiar mais de metade do tecido na cintura e levantar as bainhas das anáguas um pouco mais para cima a cada dia que passa. Será que se ficarmos cada vez mais pequenas, far-nos-á parecer um gato, para que possamos escorregar pelas pequenas rachas e escapar? Fazer um pequeno furo numa fronteira, e esgueirar-se através dela? Desenvolver um talento para a quase invisibilidade?

  Esta deve ser a razão pela qual a mãe conseguiu se esgueirar para o outro lado da fronteira, enquanto a filha ainda estava preocupada com o quão presas elas estavam. É possível que a mulher mais pequena estivesse realmente inocente quando se recusou a confessar qualquer crime da sua autoria, seja em relação a autorizações legais, a discussões sobre nomes, seja a acusações de furto.

  Aqueles que não compreendiam as suas razões, achavam-na maluca, talvez mesmo perversa. Suspeitavam que fosse enganadora, de propósito.

  Ela referiu que os homens comem o melhor e deixam os restos para as mulheres, não é verdade? Hmm? Falou sem medo? Então? Tem de ser sempre assim?

  Mas se olharmos os guardas fronteiriços olhos nos olhos, será que eles compreenderão? Atravessámos a fronteira e eles repreendem-nos.

  Ela ri-se em voz alta. Qualquer coisa que valha a pena fazer transcende fronteiras. Não devo fazer absolutamente nada?

  Não, eles contrapõem, e ninguém é tolo ao ponto de não saber isso. Até as cabras e as vacas sabem que se devem manter juntas. E a vossa visão não é assim tão má que não consigam ver, então como é que podem ser perdoadas?

  Quem é que está a pedir perdão! Ela dá gargalhadas e a filha que está cada vez maior chora. E é só isto que há para ver? Talvez eu própria já tenha visto uma ou duas coisas. Tentem ver a minha perspetiva pelo menos uma vez.

   Se ela caísse, não desejaria que fosse de cara para baixo. De onde quer que fosse a proveniência da bala, onde quer que a atingisse, ela cairia sempre para trás e ficaria deitada no chão. Regiamente. Os seus olhos repletos de céu.

   Deixa-me praticar, diria à sua filha.

   A mãe começara com soluços sem parar. Soluçava, soluçava e soluçava. Se a filha não estivesse naquele estado, ela teria desconfiado da veracidade ou da falsidade dos soluços. Não vão parar se beber água; dá-me uma palmada nas costas. A mãe exigiria. Se a palmada não for suficientemente forte, então, toma balanço e dá-me um pontapé, com estrondo! Tenta nas costas, no estômago ou nos lados, e assegura-te que caio de costas, de olhos abertos e a testa virada para cima; só aí os soluços vão certamente acabar. Era um remédio estranho, mas a filha fez o que a mãe lhe pediu. Ela pontapeou-a e pontapeou-a com força, e com esta nova estratégia a mãe continuava a cair no chão desamparada. Depois de um pouco de algazarra, os observadores começaram a rir à gargalhada, também. Consegues vencê-los? A velhota é demais. A mãe disse à filha que ela devia estar preparada.

  Enfim, abreviemos, o que aconteceu foi o seguinte: uma bala veio em sua direção, perfurou o seu corpo, atravessando-o e saindo do outro lado. Qualquer pessoa teria se estatelado de cara para baixo na lama, mas a Ma caiu de costas como se estivesse a dar uma cambalhota. Estava no chão com uma atitude de vitória, e, de uma forma elegante, com a cara para cima, como se estivesse reclinada numa cama macia e o céu a sua colcha.

  Aqueles que acham que a morte é um fim, acharam que isso era para ela. Mas aqueles que a conheciam bem sabiam que isto não era o fim; sabiam que ela tinha simplesmente atravessado mais uma fronteira.

  Por isso, não faz mal começar a história aqui mesmo, isto é, da forma como o estamos a fazer neste momento.

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