A
literatura de viagens acabou?
Morwari Zafar
Traduzido por Ivo
Eduardo Correia
A questão sobre o fim da literatura de viagens perseguiu-me durante
semanas. Viajei muito, escrevi muito, mas o que significa escrever sobre
viagens?
O género, como me apercebi nas minhas cogitações, sofreu uma mudança palpável,
mas continua relevante. A sua definição alargou-se num mundo onde o
conhecimento e a experiência são instantâneos. Conseguimos procurar no Google o
nosso caminho para os confins do globo – a nossa visão é superada pela
profundidade ótica dos satélites a milhares de quilómetros de distância. Eles
ajudam-nos a explorar todas as características topográficas da Mongólia ou ver
ao vivo uma estrada em Union City, Califórnia. Mas o que os satélites e a
Internet não fazem é dar uma voz à experiência. E é aí que a literatura de
viagens faz a diferença. É uma selfie literária, uma reflexão marcada pelo
tempo de uma experiência que vai para além da foto de uma pessoa, de um sorriso
encenado ou de um estômago contraído. O género continua a ser produzido e
consumido devido a um desejo humano intrínseco – a necessidade de se conectar e
de ser compreendido.
Pode-se argumentar que toda a escrita se encaixa no género da literatura
de viagens. Mas a literatura de viagens compromete o autor e o leitor a uma
certa intimidade que outros géneros não atingem. Porquê? Porque a literatura de
viagens é epistolar por natureza. A literatura de viagens utiliza a viagem e o
destino como referentes para comunicar algo maior – a nossa própria evolução do
pensamento e pessoa à medida que damos importância a novos ambientes e às
pessoas que encontramos ao longo do caminho.
Talvez o aspeto mais relevante da literatura de viagens é que acontece,
naturalmente, quando estamos longe. É um produto da distância. O meu primeiro texto
de literatura de viagens foi uma carta aos meus pais quando estava na escola
primária. Tinha à volta de onze anos e estava a escrever desde uma zona rural
do Surrey, Inglaterra, onde os meus colegas de turma e eu estávamos em visita
de estudo. Depois de desejar aos meus pais um feliz Nowruz (ano novo no Afeganistão)
na língua Farsi e traduzido para Inglês:
A viagem foi excelente, e chegámos em segurança. Os dormitórios são
muito bons. Durmo no beliche de cima. Temos comida suficiente e sinto-me muito
bem. Tenho imensas saudades vossas. Fizemos orientação e visitamos um campo de
saibro.
Nessa altura, já estava longe de um lar
(Afeganistão) e me habituando a estar longe dos meus pais pela primeira vez.
Cerca de duas décadas depois do meu relato impressionante de um dia de
acampamento, mantinha um blogue de viagens. Começou quando vivi em Buenos Aires
durante seis semanas por um capricho, e posteriormente, usei-o para partilhar
outras experiências – explorando tecido cicatricial em Roma, encontrando a fé
no Colorado e descobrindo belezas inigualáveis no Rio de Janeiro. Cada entrada
do blogue tinha se iniciado como um email a um amigo; reflexões pessoais ao
longo do dia que ondulavam de volta a casa ao encontro de aqueles que me eram
mais queridos, e talvez aos estranhos que não conhecia, mas que tinha a
esperança de vir a conhecer através da escrita. Reflexões de viagens que
povoavam o vazio marcado pela ausência de casa com palavras e relevância. Que
ligação pode sobrar entre seres sensíveis num mundo à parte sem qualquer forma
de correspondência?
A literatura é, assim, um meio intemporal, perpetuado pelo desejo de
encontrar o mundo muito perto ou a grande distância dos nossos olhos. Ler e escrever
sobre viagens é sobre como tocar a nossa própria alma na alma de alguém, um ato
de reconhecimento catártico, que, simplesmente, elas existem. Nesse processo,
conhecemos a nós mesmos, e, ao partilhá-lo, passamos a ser compreendidos. E
assim, escrevo na esperança de, como uma imagem, as palavras deixem uma impressão
indelével onde estamos mais vivos e ligados – na nossa imaginação.
…
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