sábado, 23 de julho de 2022

 

A literatura de viagens acabou?

Morwari Zafar

Traduzido por Ivo Eduardo Correia

  O que os satélites e a Internet não fazem é dar uma voz à experiência. E é aí que a literatura de viagens faz a diferença.”

   A questão sobre o fim da literatura de viagens perseguiu-me durante semanas. Viajei muito, escrevi muito, mas o que significa escrever sobre viagens?

   O género, como me apercebi nas minhas cogitações, sofreu uma mudança palpável, mas continua relevante. A sua definição alargou-se num mundo onde o conhecimento e a experiência são instantâneos. Conseguimos procurar no Google o nosso caminho para os confins do globo – a nossa visão é superada pela profundidade ótica dos satélites a milhares de quilómetros de distância. Eles ajudam-nos a explorar todas as características topográficas da Mongólia ou ver ao vivo uma estrada em Union City, Califórnia. Mas o que os satélites e a Internet não fazem é dar uma voz à experiência. E é aí que a literatura de viagens faz a diferença. É uma selfie literária, uma reflexão marcada pelo tempo de uma experiência que vai para além da foto de uma pessoa, de um sorriso encenado ou de um estômago contraído. O género continua a ser produzido e consumido devido a um desejo humano intrínseco – a necessidade de se conectar e de ser compreendido.

  Pode-se argumentar que toda a escrita se encaixa no género da literatura de viagens. Mas a literatura de viagens compromete o autor e o leitor a uma certa intimidade que outros géneros não atingem. Porquê? Porque a literatura de viagens é epistolar por natureza. A literatura de viagens utiliza a viagem e o destino como referentes para comunicar algo maior – a nossa própria evolução do pensamento e pessoa à medida que damos importância a novos ambientes e às pessoas que encontramos ao longo do caminho.

  Talvez o aspeto mais relevante da literatura de viagens é que acontece, naturalmente, quando estamos longe. É um produto da distância. O meu primeiro texto de literatura de viagens foi uma carta aos meus pais quando estava na escola primária. Tinha à volta de onze anos e estava a escrever desde uma zona rural do Surrey, Inglaterra, onde os meus colegas de turma e eu estávamos em visita de estudo. Depois de desejar aos meus pais um feliz Nowruz (ano novo no Afeganistão) na língua Farsi e traduzido para Inglês:

  A viagem foi excelente, e chegámos em segurança. Os dormitórios são muito bons. Durmo no beliche de cima. Temos comida suficiente e sinto-me muito bem. Tenho imensas saudades vossas. Fizemos orientação e visitamos um campo de saibro.

 Nessa altura, já estava longe de um lar (Afeganistão) e me habituando a estar longe dos meus pais pela primeira vez. Cerca de duas décadas depois do meu relato impressionante de um dia de acampamento, mantinha um blogue de viagens. Começou quando vivi em Buenos Aires durante seis semanas por um capricho, e posteriormente, usei-o para partilhar outras experiências – explorando tecido cicatricial em Roma, encontrando a fé no Colorado e descobrindo belezas inigualáveis no Rio de Janeiro. Cada entrada do blogue tinha se iniciado como um email a um amigo; reflexões pessoais ao longo do dia que ondulavam de volta a casa ao encontro de aqueles que me eram mais queridos, e talvez aos estranhos que não conhecia, mas que tinha a esperança de vir a conhecer através da escrita. Reflexões de viagens que povoavam o vazio marcado pela ausência de casa com palavras e relevância. Que ligação pode sobrar entre seres sensíveis num mundo à parte sem qualquer forma de correspondência?

  A literatura é, assim, um meio intemporal, perpetuado pelo desejo de encontrar o mundo muito perto ou a grande distância dos nossos olhos. Ler e escrever sobre viagens é sobre como tocar a nossa própria alma na alma de alguém, um ato de reconhecimento catártico, que, simplesmente, elas existem. Nesse processo, conhecemos a nós mesmos, e, ao partilhá-lo, passamos a ser compreendidos. E assim, escrevo na esperança de, como uma imagem, as palavras deixem uma impressão indelével onde estamos mais vivos e ligados – na nossa imaginação.

 

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