Fantasmas
Adam Foulds
Traduzido por Ivo Eduardo Correia
A minha tia avó, Esther, ao visitar a
primeira instituição pública social de apoio à comunidade do mundo em
Whitechapel, deixou, por breves momentos, a excursão em grupo para caminhar
através de uma entrada que dava para uma varanda, a partir da qual, ao olhar
para baixo, avistou pessoas em vestes históricas a representar, o que ela
pensava ser, uma espécie de peça. Ao se virar para chamar o marido, ela deu-se
de conta que, inexplicavelmente, estava em frente a uma parede sem qualquer
porta, embora, mais tarde, a guia confirmasse que teria havido uma há um século
e tal atrás.
A minha avó pensou que esta era uma
história das habituais em Esther, que, de acordo com a minha avó, aparentava
muito mais do que as suas faculdades banais. A primeira vez que a Esther
conheceu a sua futura nora, a jovem de cabelo escuro, usava um vestido de noiva
e um véu branco resplandecente que desapareceram num piscar de olhos e foram substituídos
pelas suas roupas normais. A minha avó era uma pessoa mais prática. Não sabia cantar
nem tocar qualquer instrumento. Quando era pequena no East End em Londres, ela
via pessoas vestidas com roupas gris e antiquadas entre a multidão. Estas
pessoas pareciam doentes e esfomeadas e a tentar chamar a atenção dos
transeuntes, puxando as suas mangas, e correndo atrás delas na multidão, com
atitudes suplicantes a pedir esmola e outras coisas. Uma delas captou a atenção
da minha avó, estava em pé, parada, olhando diretamente para trás e …
desapareceu, simplesmente.
A minha irmã mais velha, de cerca de três
anos, na altura, entrou a correr em casa vinda do jardim para dizer à minha mãe que o
tio Harry estava lá fora, sentado numa das suas cadeiras, a sorrir para ela.
(Sempre tive uma imagem mental bem clara deste encontro, embora, obviamente,
não tenha assistido ao encontro: A camisa branca do Harry com um colete visível
por baixo, e suspensórios, e o sol a brilhar levemente na sua careca castanha,
na sua cara simpática, mas maciça a qual emanava amizade e paz.) A minha mãe
começou por explicar que ele não estava lá, e, naquele preciso momento, o
telefone tocou no hall de entrada dando a notícia da sua morte.
Algumas semanas depois da morte do meu avô, o meu pai estava na Sinagoga
e ao abrir o armário ornamentado que continha os pergaminhos sagrados da Torá,
eis, quando, ele sentiu o meu avô a agarrar o seu braço. O meu avô foi à Sinagoga
a vida inteira. Aqueles que estão familiarizados com estes locais, edifícios discretos
em ruas comuns de Londres, conseguirão imaginar o conforto que ele sentia no
seu interior, o conforto destas modestas interpretações de grandiosidade divina
– bancos de madeira, uma mesa com os livros das orações com os nomes dos
doadores colados no interior das capas, uma cortina de veludo em frente ao
armário e sobre a tribuna com tecidos bordados a prata e ouro formando palavras
hebraicas ou as estrelas de David, ou um pequeno leão de Judas, e sinos de
prata tilintantes nas pegas dos pergaminhos. Ele conhecia de cor as cerimónias
e conseguia assistir a elas mesmo em devaneio ou durante uma conversa com
alguém. E, por isso, não é surpresa que ele aparecesse lá, e não em todos os outros
sítios.
Se o meu avô quisesse te dizer algo, ele
apertar-te-ia primeiro o antebraço a fim de chamar a tua atenção. “Ei!”, ele
diria, ou “Ei, ouve!” ou “Ei, quero te dizer algo” ou “Ei, passa-me o sal, por
favor!” Ele gostava de sal e de rábano. Ele apertava, ele abraçava, ele tinha
acessos de fúria, e era de humores. Os seus olhos costumavam, às vezes, transbordar
de afeto. Na Sinagoga, ele era muitas vezes convocado para o mitzvah da
abertura do armário onde estão os pergaminhos sagrados da Torá, e, é por isso
que o meu pai pensou que ele o agarrou nesse preciso momento. Era inequívoco,
disse; era ele, sem dúvida.
Eu próprio já vi algumas coisas. Eram menos
claras, menos exteriores, eram mais pensamentos que caíam nos meus pensamentos
vindos de algures. Uma vez foi a cara de um amigo que tinha acabado de morrer, a
sorrir, radiante, completamente sem dores, o centro de uma vasta e irracional
reafirmação. Permaneceu comigo, na minha visão durante uns instantes e depois
desapareceu. Depois disso, consegui imaginá-lo de novo, mas não consegui mais
me sentar simplesmente e olhar para ele. Ele já se fora. Recorro a esta memória
de vez em quando. Confio nela, e apesar do meu receio, das minhas dúvidas,
desvanece-se até desaparecer. Por razões profissionais e pessoais – casamento,
vivo agora noutro continente, longe de todas aquelas pessoas, num mundo alheio
a elas. Nada aqui remete a elas a não ser eu. Lá fora neva, abrandando o
tráfico. Caras aparecem e desaparecem por detrás das máscaras. À noite, os
números dos mortos rastejam ao longo do botão do ecrã da televisão. Se pudesse,
atravessaria de imediato estas paredes.
…
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