segunda-feira, 11 de julho de 2022

 

Fantasmas

Adam Foulds

Traduzido por Ivo Eduardo Correia

    A minha tia avó, Esther, ao visitar a primeira instituição pública social de apoio à comunidade do mundo em Whitechapel, deixou, por breves momentos, a excursão em grupo para caminhar através de uma entrada que dava para uma varanda, a partir da qual, ao olhar para baixo, avistou pessoas em vestes históricas a representar, o que ela pensava ser, uma espécie de peça. Ao se virar para chamar o marido, ela deu-se de conta que, inexplicavelmente, estava em frente a uma parede sem qualquer porta, embora, mais tarde, a guia confirmasse que teria havido uma há um século e tal atrás.

    A minha avó pensou que esta era uma história das habituais em Esther, que, de acordo com a minha avó, aparentava muito mais do que as suas faculdades banais. A primeira vez que a Esther conheceu a sua futura nora, a jovem de cabelo escuro, usava um vestido de noiva e um véu branco resplandecente que desapareceram num piscar de olhos e foram substituídos pelas suas roupas normais. A minha avó era uma pessoa mais prática. Não sabia cantar nem tocar qualquer instrumento. Quando era pequena no East End em Londres, ela via pessoas vestidas com roupas gris e antiquadas entre a multidão. Estas pessoas pareciam doentes e esfomeadas e a tentar chamar a atenção dos transeuntes, puxando as suas mangas, e correndo atrás delas na multidão, com atitudes suplicantes a pedir esmola e outras coisas. Uma delas captou a atenção da minha avó, estava em pé, parada, olhando diretamente para trás e … desapareceu, simplesmente.

     A minha irmã mais velha, de cerca de três anos, na altura, entrou a correr em casa vinda do jardim para dizer à minha mãe que o tio Harry estava lá fora, sentado numa das suas cadeiras, a sorrir para ela. (Sempre tive uma imagem mental bem clara deste encontro, embora, obviamente, não tenha assistido ao encontro: A camisa branca do Harry com um colete visível por baixo, e suspensórios, e o sol a brilhar levemente na sua careca castanha, na sua cara simpática, mas maciça a qual emanava amizade e paz.) A minha mãe começou por explicar que ele não estava lá, e, naquele preciso momento, o telefone tocou no hall de entrada dando a notícia da sua morte.

     Algumas semanas depois da morte do meu avô, o meu pai estava na Sinagoga e ao abrir o armário ornamentado que continha os pergaminhos sagrados da Torá, eis, quando, ele sentiu o meu avô a agarrar o seu braço. O meu avô foi à Sinagoga a vida inteira. Aqueles que estão familiarizados com estes locais, edifícios discretos em ruas comuns de Londres, conseguirão imaginar o conforto que ele sentia no seu interior, o conforto destas modestas interpretações de grandiosidade divina – bancos de madeira, uma mesa com os livros das orações com os nomes dos doadores colados no interior das capas, uma cortina de veludo em frente ao armário e sobre a tribuna com tecidos bordados a prata e ouro formando palavras hebraicas ou as estrelas de David, ou um pequeno leão de Judas, e sinos de prata tilintantes nas pegas dos pergaminhos. Ele conhecia de cor as cerimónias e conseguia assistir a elas mesmo em devaneio ou durante uma conversa com alguém. E, por isso, não é surpresa que ele aparecesse lá, e não em todos os outros sítios.    

    Se o meu avô quisesse te dizer algo, ele apertar-te-ia primeiro o antebraço a fim de chamar a tua atenção. “Ei!”, ele diria, ou “Ei, ouve!” ou “Ei, quero te dizer algo” ou “Ei, passa-me o sal, por favor!” Ele gostava de sal e de rábano. Ele apertava, ele abraçava, ele tinha acessos de fúria, e era de humores. Os seus olhos costumavam, às vezes, transbordar de afeto. Na Sinagoga, ele era muitas vezes convocado para o mitzvah da abertura do armário onde estão os pergaminhos sagrados da Torá, e, é por isso que o meu pai pensou que ele o agarrou nesse preciso momento. Era inequívoco, disse; era ele, sem dúvida.

   Eu próprio já vi algumas coisas. Eram menos claras, menos exteriores, eram mais pensamentos que caíam nos meus pensamentos vindos de algures. Uma vez foi a cara de um amigo que tinha acabado de morrer, a sorrir, radiante, completamente sem dores, o centro de uma vasta e irracional reafirmação. Permaneceu comigo, na minha visão durante uns instantes e depois desapareceu. Depois disso, consegui imaginá-lo de novo, mas não consegui mais me sentar simplesmente e olhar para ele. Ele já se fora. Recorro a esta memória de vez em quando. Confio nela, e apesar do meu receio, das minhas dúvidas, desvanece-se até desaparecer. Por razões profissionais e pessoais – casamento, vivo agora noutro continente, longe de todas aquelas pessoas, num mundo alheio a elas. Nada aqui remete a elas a não ser eu. Lá fora neva, abrandando o tráfico. Caras aparecem e desaparecem por detrás das máscaras. À noite, os números dos mortos rastejam ao longo do botão do ecrã da televisão. Se pudesse, atravessaria de imediato estas paredes.

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