O Livro da Forma e do Vazio
Ruth Ozeki
Vencedora do Women’s Prize
for Fiction 2022
Traduzido do original
por Ivo Eduardo Correia
No
início
Um livro começa algures. Uma letra corajosa tem de se voluntariar para
ser a primeira, esperando na fila como um ato de fé, a partir do qual a palavra
cria coragem e segue, levando uma frase ao seu despertar. A partir daqui um
parágrafo acumula palavras e, em breve, uma página, e o livro avança
encontrando uma voz, pedindo para existir.
Um livro tem de começar algures e este começa aqui.
Um rapaz
Sshh … ouvi!
É o meu livro, e está a falar convosco.
Conseguirdes ouvi-lo? Não faz mal se não o ouçam, entretanto. Não é culpa
vossa. As coisas falam muito, mas se os vossos ouvidos não estiverem
sintonizados, tende vós de aprender a ouvir.
Podeis começar por usar os olhos porque é mais fácil. Olhai para todas
as coisas à vossa volta. O que vedes? Um livro, obviamente, e obviamente, o
livro está a falar convosco, por isso, tentai algo mais desafiante. A cadeira
na qual estais sentados. O lápis no bolso. O ténis no pé. Ainda não conseguis ouvir? Então, ficai de joelhos e colocai a cabeça no assento ou tirai o sapato
e colocai-o junto ao ouvido – não, esperai, se houver pessoas à volta, elas vão
pensar que estais malucos, por isso tentai com o lápis primeiro. Os lápis
contêm histórias em si, e são seguros a menos que enfiais a ponta no ouvido.
Colocai-o perto da cabeça e prestai atenção. Conseguis ouvir o sussurro da
madeira? O fantasma do pinho? O murmúrio do chumbo?
Às vezes é mais do que uma voz. Às vezes é um coro de vozes inteiro a
erguer-se duma simples coisa, especialmente se é um coisa feita por uma grande
quantidade de fabricantes diferentes, mas não fiqueis amedrontados. Acho que
depende do tipo de dia que estava a ter em Guangdong ou no Laos, ou onde quer
que seja, e se estivesse a ter um bom dia na velha fábrica, se estivesse a
desfrutar de um pensamento agradável naquele preciso momento em que aquela
anilha especifica que vinha aos tombos ao longo da linha de montagem e passasse
pelos dedos do trabalhador, então aquele agradável pensamento irá se agarrar ao
orifício. Às vezes não é tanto um pensamento, mas uma sensação. Uma sensação
agradável e calorosa, como o amor, por exemplo. Ensolarada e amarela. Mas quando
é uma sensação triste ou zangada, uma que fica atada no vosso sapato, então é
melhor ter cuidado porque aquele sapato pode fazer merda da grossa, como
obrigar-vos a marchar até à porta de uma loja da Nike, ou, onde podereis, por
exemplo, acabar por destruir a montra com um taco de basebol feito de madeira
louca. Se isso acontecer, continua a não ser culpa vossa. Apenas desculpai-vos
à montra, dizei, lamento pelo vidro e o que quer que façais, não tenteis
explicar. O polícia que vos der ordem de prisão não quererá saber das condições
horríveis na fábrica de tacos de basebol. Não quererá saber das motosserras ou do
freixo resistente de que o taco é feito, por isso, calai-vos, simplesmente. Ficai
calmos, sede educados, lembrai-vos de respirar. É importante não ficar
preocupado, porque aí as vozes irão ficar em vantagem e controlar as vossas
mentes. As coisas são carentes. Ocupam espaço. Querem atenção, e levar-vos-ão à
loucura se o deixardes. Lembrai-vos, apenas sois como um controlador de tráfico
aéreo, não, esperai, sois como um maestro de uma grande banda de metais,
composta por todos os materiais brilhantes, coloridos e vistosos do planeta, e
estais flutuando no espaço sideral, sentados neste grande monte de lixo que é a
Terra, com o cabelo com gel, penteado para trás, e o fato limpo e elegante, e a
batuta no ar, rodeados por todas as coisas impacientes, e por um breve e bonito
momento, todas as vozes se silenciam, à espera que baixais a batuta.
Música ou loucura. Tudo depende
completamente de vós.
…
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