sábado, 5 de julho de 2025

A vida é uma dádiva de Deus e, por conseguinte, cada minuto é sagrado...

 

Arranjar coragem

No pesadelo recorrente que me põe diante São Pedro, enquanto este faz as contas para ver se me deixa entrar no Paraíso, não são os meus pecados que se contabilizam, mas os tempos que perdi. “Sabe”, diz Pedro com o dedo a percorrer uma lista onde constam todos os meus desperdícios horários, “A vida é uma dádiva de Deus e, por conseguinte, cada minuto é sagrado...”. “Eu sei, eu sei...”, digo eu, atrapalhado, “mas não me diga que perder tempo também não é um prazer divino...”.

“Sim, sim”, diz Pedro, zangado com os totais que vai encontrando, “mas o mais importante são as alegrias da vida que lhe passaram completamente ao lado...”.

A certa altura, Pedro deixa mesmo cair a lista e grita: “Mas o que é isto?” Tremo: “É o onanismo?”E ele: “Não, claro que não: o onanismo é importante para o desenvolvimento da sexualidade.”

“É isto!”, diz ele a apontar para uma rubrica que regista 83 mil horas e 45 minutos de vida. É a rubrica “Arranjar coragem”.

“Ó homem de Deus!”, diz Pedro, “mas em quantas guerras santas teve de participar, para ser preciso arranjar tanta coragem?”.

Como poderei defender-me? Eis as linhas gerais do que proponho dizer:

Arranjar coragem é uma ponte — uma ponte que custa muito a construir, para juntar duas margens que se repelem. De um lado, está a preguiça. E do outro, separada por um rio desgovernado, está a actividade odiada.

É por isso que leva tanto tempo a arranjar coragem. Não é de um momento para o outro que nos despedimos do quentinho de não fazer nada. É preciso jeitinho. O não fazer nada é muito sensível. É inseguro. Tem terror de ser abandonado. Não vai com “até jás”.

É preciso lentidão — e um grande cuidado para não ferir susceptibilidades.

Às vezes, para arranjar coragem para uma actividade que leva cinco minutos, é preciso uma hora. É uma hora de paciente mentalização perante a tarefa ameaçada. Para não falar na preparação psicológica para o sofrimento iminente.

Ganhar coragem é perder conforto. Custa porque é desumano.

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