sábado, 6 de agosto de 2022

 

Apontamentos sobre…

como escrever um romance

Sara Freeman

Tradução: Ivo Eduardo Correia 06-08-2022

  Há uma espécie de amnésia necessária que se instala quando se termina de escrever um romance. Como o parto, deve-se esquecer; o futuro exige isso de nós. Se nos lembrássemos, se realmente nos lembrássemos, então certamente não faríamos isso de novo. Ou talvez a própria experiência de escrever um romance seja uma espécie de esquecimento sustentado, uma fuga controlada.

  Lembro-me de um ensaio de John Berger, About Looking, em especial o capítulo Seker Ahmet e a Floresta. Berger, no seu ensaio, examina repetidas vezes o quadro de Ahmet de finais do século XIX, que retrata num jogo assombroso de perspetiva, a floresta, como paisagem clássica – cena contida com as suas bordas visíveis à distância – e uma floresta em toda a sua obscura intratabilidade vivenciada não de fora, mas de dentro, por um lenhador e seu burro passando por ela, ou como Berger sugere, engolidos por ela. “A atração e o terror da floresta,” escreve Berger, “é como nos vemos nela, como Jonas na barriga da baleia. Embora tenha limites, estamos cercados por ela. Agora esta experiência, que é a de qualquer pessoa familiarizada com florestas, depende de como nos vemos com visão dupla. Fazemos o nosso próprio caminho pela floresta, e, simultaneamente, vemo-nos, como de fora, engolidos por ela.”

  Esta “visão dupla” é certamente uma descrição adequada de como se perder dentro do mundo do seu próprio romance – imersão total e consciência simultânea dos limites dessa imersão. Muitas vezes senti, ao escrever o meu romance Marés, que a simultaneidade da atenção necessária para escorar esse mundo imaginário, estar ao mesmo tempo inteiramente dentro e engolida pelas frases e pela sua atmosfera, e também muito fora delas, consciente da boca deglutindo, correspondia a um casamento quase impossível de submissão e controle.

  Pareceu-me importante que a descrição de Berger da condição existencial da floresta, ao mesmo tempo insondável e circunscrita, seja aquela vivenciada por aqueles que estão “familiarizados com a floresta”. E então os lenhadores que o são pela primeira vez?

  Embora Marés seja o meu primeiro romance publicado, não é, de facto, o primeiro que escrevi. À beira dos trinta anos trabalhei noutro romance durante três anos. Senti-me muito apaixonada por esta história, pelo seu potencial. Mas por cada passo experimental que dava, tinha de fazer um novo rascunho, por isso, sentia-me completamente perdida, tinha pouco para conter os meus esforços. Ao não estar familiarizada com florestas, não tinha noção dos seus limites necessários. Trabalhei sem saber o que fazer, completamente do interior, aperfeiçoando frases e cenas, sendo engolida por uma paisagem interior, sem noção de um plano geral, uma forma que pudesse conter tudo o que esperava alcançar. No final, o livro, as suas múltiplas perspetivas, os seus capítulos quase sem ligação entre si, não coalesceram. Fiquei, em vez disso, com três grupos de árvores, separadas umas das outras a uma distância arbitrária – não uma floresta.

  Identifiquei, já muito tarde no processo, o que Rachel Cusk, no seu livro de memórias Aftermath, chama de falha no plano. Ao descrever a sua própria experiência de “escrever um romance de forma errada”, ela escreve: “O problema geralmente está na relação entre a história e a verdade. A história tem de obedecer à verdade, ela está para a verdade, como as roupas estão para o corpo. Quanto mais justo o corte, mais agradável é o efeito.” Cheguei à conclusão que “o corte” aqui significa não apenas a necessária contenção da verdade pela história, mas também a própria forma que a história deve tomar, o artificio vital da forma. Pensava, nessa altura, de forma ingénua, que se simplesmente escrevesse com sinceridade sobre as minhas personagens cuidadosamente imaginadas, conseguiria escrever um romance. Como num daqueles sonhos de ansiedade mais prosaicos, chegava ao palanque, pronta para fazer o meu discurso bem-intencionado, olhava para baixo, apenas para me aperceber que me tinha esquecido de vestir as minhas roupas.

  Lamentei não escrever durante um ano. Esqueci-me.

  E, depois de ter esquecido, tentei novamente. Uma personagem, desta vez, uma história bem simples, uma mulher que deixa a sua vida para trás após uma série de ruturas irreparáveis. Por outras palavras, uma floresta mais pequena, na qual suspeitava que poderia me perder, sem me perder completamente. Estaria a mentir se dissesse que correu bem. Ainda não sabia como escrever um romance. Criei limites artificiais. A história na sua primeira interação moveu-se, como um pendulo, do passado ao presente dando o mesmo peso a ambos, sem qualquer razão aparente – uma forma que não se deslocou do interior, mas imposta do exterior, um ato de vontade indesejado. Mas segui em frente, como o burro no quadro de Seker Ahmet, leal ao lenhador que tinha esperança de me vir a tornar. Quando reli o rascunho meses mais tarde, encontrei, em todas as páginas, apenas um punhado de frases que valia a penar guardar. Fiquei arrasada, ou com raiva – talvez ambas.

  Recusei continuar, pura teimosia. Pensei em desistir.

  E, no entanto, tinha recuperado da minha humilhação – quanto trabalho e quão pouco parecia aproveitável – Apercebi-me que tinha a minha personagem. E, talvez mais importante, tinha algumas frases, doze talvez, tão estranhas, mas para mim tão certas, pareciam ter sido escritas por uma escritora diferente, uma em que eu podia me querer tornar.

  Voltei várias vezes ao alerta de Annie Dillard na sua obra The Writing Life: “O processo não importa; apague os seus rastos. O caminho não é a obra. Espero que os vossos rastos tenham crescido. Espero que os pássaros comam as migalhas; espero que atire tudo fora e não olhe para trás.” Fiz isso simplesmente. Abri um novo documento, e escrevi, mantendo apenas algumas frases estranhas que guardei na minha mente, a sua urgência deslocada, e muito rapidamente uma floresta emergiu, real, atraente e aterrorizante. E depois algo ainda mais inesperado aconteceu: enquanto escrevia estas novas e estranhas frases – minhas, mas também não, que em sua estranha autonomia pareciam se escrever a elas próprias – estava consciente, também, das bordas que ganhavam forma à volta do que eu escrevia, uma sensação do todo de alguma forma a tomar posse a partir de dentro, e cercando os meus esforços do lado de fora. Não só a história encontrou uma forma que capturou a sua verdade, a verdade da história emergiu da sua própria forma, do som e da cadência das frases, a sua colocação solitária na página. Tinha encontrado a minha visão dupla.

  Perto do fim, não sabia se adorava o que tinha escrito, mas sabia que tinha escrito algo, ao mesmo tempo habitável, um lugar com uma atmosfera muito particular, um jogo sinistro de sombra e luz, e algo com uma materialidade externa, uma forma que era coerente o suficiente para ser chamada de história.

  Nestes dias, persigo a periferia de uma nova floresta, atraída, apavorada. Por agora, tenho a esperança de ter esquecido apenas o suficiente para considerar voltar a fazê-lo.

 

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

 

Naomi

Sarah Hall – tradução Ivo Eduardo Correia

Quando tinha oito anos a minha mãe morreu e a Naomi apareceu. O meu pai ainda vivia connosco nessa altura; tínhamos uma casa na orla da cidade, numa das ruas ingremes que levam ao farol, de onde se vê as montanhas do interior. Estávamos perto do Natal. Os cumes estavam cobertos de neve e o ar frio e rarefeito. Estávamos às compras, presentes de Natal e o meu pai tinha trazido o carro – a casa de bonecas que queria era bastante grande, demasiado grande para ser levada à mão, por isso tinha a certeza que me a iam comprar. A minha mãe tinha estado a se queixar o dia inteiro de uma dor de cabeça. Em cada loja que entrávamos ela fazia uma cara de dor.

  Estas luzes tão brilhantes.

  Ela continuava a arrastar os pés e a se sentar, esfregando a testa. Tínhamos estado na antiga biblioteca cívica, e, pouco habitual nela, não levou nenhum livro emprestado. O meu pai estava preocupado.

  Porque é que saíste de casa com essa enxaqueca? Queres que te leve a casa?

  De regresso ao carro, ela tropeçou. O meu pai ia um pouco à frente para ligar o carro e o aquecimento. Ele não viu. Ela perdeu o equilíbrio e caiu no pavimento, ajoelhou-se por uns instantes na neve enlameada, depois inclinou-se e sentou-se.

  Adam, ela chamou pelo meu pai. Onde está a Edith? Está contigo?

  Ela parecia muito calma. O seu discurso era lento.

  Adam, não consigo vê-la.

  Achei que ela estava a começar um daqueles jogos interessantes – ela conseguia ser parva e brincalhona. Eu não estou aqui, mamã, disse-lhe, andando por detrás dela. E, não estou aqui. Ela levantou uma mão e cuidadosamente apalpou o ar.

  Não consigo. Ver.

  Agachei-me à sua frente, olhei-a fixamente, abanei a minha cabeça de um lado para outro. Os seus olhos não acompanhavam.

  Uma das iris parecia um planeta negro.

  Chamei o meu pai.

  O meu pai voltou para o nosso pé.

  Afasta-te, disse-me. O que é que se passa, Naomi? Porque é que estás sentada aí, estás a ficar toda suja?

  Ela levantou o braço e o meu pai pegou nela, levantou-a. Quando a largou, ela desequilibrou-se e quase caía de novo.

  Ele acompanhou-a ao longo do parque de estacionamento, abriu a porta do Volvo e ajudou-a a entrar para o banco de trás. A cada movimento ela perdia força, como se fosse um brinquedo que estava a ficar sem bateria. Permaneceu quieta no banco de couro vermelho, os seus olhos abertos e vazios.

  Vai à frente, o meu pai ordenou-me.

  Era a primeira vez que me deixavam ir no lugar do passageiro. Coloquei o cinto de segurança. Estava folgado, pois estava como se fosse para um adulto. O meu pai arrancou com o carro, conduzindo sem pressa e parando nos semáforos. Por qualquer razão, achei que fossemos a caminho de casa. Continuava a me virar para trás para ver a minha mãe como estava. Ela respirava de uma forma acelerada, as suas pálpebras começavam a descair. Ela tentou falar, mas as suas palavras eram sons sem nexo. Da sua garganta saía um som metálico. Olhei de novo, e a sua face estava cheia de baba.

  A mãe não está bem. Ela não está bem.

  Certo, obrigado, Edith, o meu pai disse-me.

  Não estava assustada. Ninguém no carro estava com receio do que se estava a passar.

  Agora vira-te e senta-te direita.

  Ele conduziu até à porta das urgências. Parou o carro e puxou o travão de mão.

  Fica aqui, ordenou-me.

  Também quero entrar.

   Não, disse.

   Mas quero ir com a mamã.

   Ele estendeu a mão sobre a alavanca de velocidades e deu-me uma palmada nas pernas, uma palmada desajeitada que atravessou a minha saia e os collants. Depois saiu do carro, entrou nas urgências e veio acompanhado por um auxiliar e uma cadeira de rodas. Tiraram a Naomi de dentro do carro e colocaram-na na cadeira de rodas. Observei-a a ser levada para dentro, o seu corpo a descair para o lado. Os meus olhos lacrimejavam, as lágrimas refratavam tudo, e, por breves instantes, havia duas mulheres descaídas em duas cadeiras de rodas, pisquei os olhos e uma delas desapareceu. O carro cheirava a azedo. Devido ao frio no exterior quando coloquei a palma da minha mão no vidro do passageiro os contornos ficaram visíveis. Uma ambulância parou ao lado do carro e os paramédicos descarregaram uma maca.

  Quando o meu pai voltou ao carro, não me pediu desculpa. Não disse nada. Estacionou o carro. E levou-me em silencio para dentro do edifício, a sua mão pousada nas minhas omoplatas.

  A rececionista emprestou-me livros infantis.

  Pareces uma menina esperta, ela disse. Aposto que consegues ler estes livros sozinha?

  Ouvia-a falar com os médicos, com o meu pai, ao telefone. Estavam a planear transferir a minha mãe para outro hospital o mais rapidamente possível. Enquanto o meu pai foi à casa de banho, dirigi-me discretamente à rececionista e perguntei-lhe se podia ver a minha mãe.

  Não, boneca, não podes, tem paciência. Ela está muito doente e precisa de ser operada.

  Qual é o problema? Perguntei-lhe. É a dor de cabeça?

  A rececionista disse que sim com a cabeça, mostrando-se satisfeita, já que eu tinha respondido a uma pergunta de escola acertadamente. Ela tem um coágulo de sangue no cérebro. Ora, já aqui está de novo …

  O som do helicóptero a se aproximar era inconfundível – as pás furiosas, o ar fazendo remoinho contra o edifício ao aterrar. De repente, apercebi-me que era muito grave. Os helicópteros eram usados para resgatar montanhistas que tinham se despenhado dos cumes. Eram usados no salvamento de vidas. Por uns instantes, achei que iriamos todos, estava iluminada de entusiasmo e medo; nunca tinha voado anteriormente. Mas, quase de seguida, o helicóptero levantou voo, mais barulhento do que nunca, parecia, os rotores gemendo, uma explosão de barulho ensurdecedor. Uns segundos depois parecia um drone distante.

  O meu pai levou-me para casa, fez-me torradas, e pediu-me para ir para a cama.

  Tens de ser uma menina grande, Edith. Fiquei olhando as estrelas cintilantes coladas no teto do meu quarto.

  Na manhã seguinte disse-me que a minha mãe tinha sido transportada de avião para Newcastle onde foi operada. Teria de permanecer no hospital várias semanas.

  Foi uma operação muito delicada. Tiveram de fazer algumas coisas, o que significa que ela não será a mesma durante algum tempo. Ela pode nem saber quem tu és.

  Ele estava a usar as mesmas roupas do dia anterior. Os seus olhos estavam inchados. A sua face parecia inchada e as suas feições estavam concentradas lá.

  Sim ela vai-me reconhecer, disse-lhe.

  Ele abanou a cabeça que sim.

  Ela está em coma. A mãe da Christine vem tomar conta de ti hoje.

  Passamos o Natal só os dois, comendo miseravelmente tarte de carne moída. A árvore ficou por decorar; apenas o seu cheiro era festivo e tranquilizador. Não houve casa de bonecas. O meu pai comprou-me um casaco à última da hora; o preço ainda lá estava. Na primeira oitava deslocou-se ao hospital outra vez. Os pais da Christine fizeram-me uma festa, deram-me chocolates e leite. A Christine perguntou-me se a minha mãe ia morrer. Menti-lhe e disse que a acompanhei no helicóptero. Quando o meu pai chegou para me vir apanhar, ouvi-o a falar em voz baixa com a mãe da Christine, enquanto fui buscar os meus sapatos e o casaco.

  Parece o Frankenstein, disse. Está mesmo horrível. Sempre que ele fazia o trajeto até ao hospital, perguntava-lhe quando é que a poderia ver.

  Ainda não, era tudo o que me dizia. Ela ainda não está bem. Ela não se lembra.

  Na minha primeira visita ao centro de reabilitação, a minha mãe estava sentada numa mesa fazendo um desenho. Tinha uma faixa de pelos no cabelo que continha uma extensa cicatriz com os pontos levantados parecendo uma lagarta. Um lado da sua face parecia repuxado e levantado. Fiquei à porta, demasiado amedrontada para me aproximar.

  Vai, o meu pai ordenou-me. Querias vir. Vou buscar um café.

  Ele não estava a olhar para a minha mãe, não a tinha cumprimentado.

  Ele afastou-se e caminhou pelo corredor. A minha mãe não parecia que tivesse se apercebido que eu estava lá. Ela vestia um pijama azul pálido com flocos de neve o que a fazia parecer mais nova. Uma enfermeira entrou no quarto atrás de mim.

  Deves ser a Edith. A tua mãe tem tido saudades tuas. Vem.

  Ela levou-me até à mesa, puxou uma cadeira e sentei-me. A enfermeira colocou carinhosamente um cachecol à volta da cabeça de aminha mãe e amarrou-o atrás, cobrindo o vergão roxo, curvo.

  Agora sim.

  Mas eu não consegui deixar de não ver a ferida horrível. O desenho era infantil, uma árvore ou uma figura. Parecia confusa com a linha que estava a desenhar, que direção seguir. Tirei o lápis da sua mão. Olhou para mim. O seu olhar era vazio, mas curioso, como um pássaro avaliando um objeto no chão. Acabei a linha, desenhei um ninho no galho com ovos pintados no seu interior. A sua boca abriu e fechou várias vezes, fazendo um estalido como se estivesse a humedecê-la. Com um esforço concentrado, quase físico disse, saa, no, mi. Olhei para a enfermeira que sorria. 

  O que é que ela está dizendo? Perguntei.

  A enfermeira pôs as mãos nos seu ombros para parar o movimento espásmico que estava a aumentar.

  Ela está a se apresentar. Está a dizer, sou a Naomi.

  A hemorragia tinha causado danos irreversíveis, e o procedimento trouxe as suas próprias consequências. Uma secção precisa do osso tinha sido serrada e removida, e o vácuo original do órgão rompeu. Os médicos tinham remendado o tecido, cortado o vaso, e o fluxo sanguíneo do cérebro foi redirecionado. Contra todas as previsões, a rutura não a tinha matado. A Naomi iria recuperar, lentamente, anatomicamente, mas algo fundamental foi interrompido durante a operação de reparação – a complexa biblioteca do pensamento, da memória, da emoção e da personalidade. Salvaram-na a vida, mas não a conseguiram salvar. O exame pós-cirúrgico revelou uma segunda protuberância, inoperável, muito difícil de lá chegar. Havia outra espada vermelha e macia suspensa dentro da sua cabeça. Deveriam lhe ter dito depois da operação, logo que ela estivesse em condições de perceber. Ela processou a informação como se fizesse parte das instruções para a sua recuperação – a nova forma de viver, e, ao mesmo tempo, uma morte anunciada.

  Quem ela era, quem ela não era mais, definiu as nossas vidas. Anos mais tarde, durante um programa de intercâmbio internacional tentei explicar o que tinha acontecido ao meu formador, Shun. Estudava as técnicas de queima do cedro que tenho usado desde então – e vivia com a sua família. A bolsa de estudo tinha sido oferecida pelo Centro Malin; o seu diretor tinha providenciado seis estágios extraordinários a jovens artistas da organização “At Home” com criadores de todo o mundo. Estava numa vila nos arredores de Kyoto, rodeada pela enorme floresta cor de chumbo.

  O Shun e eu tornámo-nos amigos discretos ao longo dos meses. Comia com a família e ofendia-os delicadamente com a minha ignorância e ausência de boas maneiras, reproduzia música para os seus filhos ouvirem nos auriculares. O trabalho de Shun era excecional, muito para além da carpintaria – fazia também painéis para os edifícios tradicionais, e criava esculturas densas e negras que eram vendidas em todo o mundo. Fui a sua primeira estagiária ocidental, que estava a tentar aprender os segredos do uso de tubos de fogo e resinas, e a tentar fugir ao espartilho das belas artes. O Inglês de Shun era bom; ele tinha estudado na Califórnia antes de herdar o negócio do pai. Irritei-o e entretive-o a maior parte do tempo. Tinha estado a me ensinar como usar a escova de arame em revestimentos queimados a carvão com o intuito de revelar a bela estrutura subjacente, e quando lhe falei da Naomi, fez uma pausa.

  Essa palavra, identidade, disse, acabou de chegar aqui. É uma palavra singular. Não conseguimos traduzi-la.

  A sua personalidade única, Shun. Sabe o que quero dizer. O seu carácter, a sua essência como Naomi!

  Era uma jovem com uma pós-graduação em Arte, a tentar me avaliar e a desenvolver uma experiência pessoal. Estava perdida neste lugar estranho, calmo, diferente – uma gaijin, uma não Japonesa. O Shun ergueu uma das suas mãos para a floresta onde os cedros estavam em fileiras iluminadas de verde.

  Ela é a sua mãe. Não pode perder a sua essência, se não está separada.

  Parecia, pois, uma bela negação do conceito.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

 

O destino não se rege pelos astros

The Stars are blind – Paris Hilton

Anna Dorn

  Há alguns anos atrás, quando estive temporariamente desempregada, comecei a fazer leituras astrológicas para ganhar algum dinheiro. A ideia de passar a cobrar pelo meu passatempo surgiu no aeroporto de Las Vegas, durante uma escala, enquanto bebia uma cerveja num espaço em homenagem a Dolly Parton com slot machines. Estando rodeada de pessoas que ganham bom dinheiro sem fazer absolutamente nada, inspirou-me a transformar as minhas preocupações em lucros. Na verdade, nunca estudei astrologia a sério, no entanto, estive online muitas vezes, e a viver em Los Angeles, o que significava que sabia o suficiente.

  Fui arrastada pela primeira vez para a astrologia durante uma conversa sobre o tema. Geralmente não gosto de conversas de circunstância, acho-as entediantes. Na verdade, não me interessa saber o período de jejum intermitente de alguém ou como o Orange Wine mudou a sua vida. Gosto que a astrologia não seja conversa da treta, ou, talvez seja uma forma mais interessante de conversa da treta. Quero saber se alguém tem problemas de controle ou é propenso à histeria.

  Gosto também que a astrologia transcenda a classe, o género e a sexualidade. Todos nós temos uma data de nascimento e um mapa astral. Enquanto alguns signos são mais demonizados (Escorpião e Gémeos) do que outros (Touro e Peixes), todas as características revelam boas ou más qualidades, e não têm nada a ver com o sítio onde crescemos, a matiz da nossa pele, a expressão de género ou o prestígio das nossas profissões. Foi assim que justifiquei a minha crescente obsessão. Usamos o Sol para indicar o tempo, sabemos que a Lua é responsável pelas marés, por isso não é escandaloso pensar que a posição dos planetas na altura em que nascemos influencie a nossa personalidade. Ou, talvez seja. Não sou cientista. Sou romancista. Ganho a vida a inventar coisas.

  Há uma forma de fazer leituras astrais que aprecio. Francamente, lembra-me o breve período de tempo em que exerci advocacia. Suspeito que de advogada a astróloga seja uma trajetória de carreira invulgar, mas oiçam-me com atenção: Em ambas as profissões, deram-me uma série de regras a seguir (lei, estatutos, jurisprudência) e, como obrigação, argumentar de uma forma coerente. Quando uma amiga me pediu para elaborar a compatibilidade astrológica de cada membro da sua festa de despedida de solteira, senti que estava novamente a fazer o exame de admissão à Faculdade de Direito. Em geral, os signos da água e da terra dão-se bem; enquanto que os signos do ar são mais compatíveis com os signos do fogo. Mas, eu tinha de ter em conta não apenas o signo Sol (a nossa alma), mas também a Lua (as nossas emoções), Vénus (o amor), Mercúrio (a comunicação) e Marte (o sexo). Elaborei uma folha de cálculo extensa onde guardo todos os dados e verifico quem é o par perfeito de quem. Provavelmente, não precisava de levar isto tão a sério, mas sou quem sou. Para uma Virginiana o objetivo é sempre a perfeição.

  Durante muitos anos tive vergonha de ser do signo Virgem. Não é propriamente um signo popular. Somos conhecidos por sermos estudiosas, tímidas e obcecadas pela limpeza. Claro que sou todas essas coisas, e não são as minhas características favoritas. Mas, descobri que a Beyoncé é Virgem, e comecei a me sentir um pouco melhor. A Beyoncé não é uma totó; ela é uma superestrela. É reservada com a imprensa, o que é admirável, e as suas compulsões obsessivas manifestam-se através de uma exigente dedicação à sua arte, nos discos de platina, e em centenas de milhões de dólares. Nada me fez sentir mais Virginiana do que o documentário concerto “Homecoming”, no qual cada minuto é programado ao detalhe de uma forma agoniante, e no qual a Bey controla tudo, desde os fatos usados pelas dançarinas, à disposição do palco, e durante o qual ela está sempre a se autocriticar pelo fracasso que é não atingir a perfeição, o que, claro, é impossível – o dilema máximo do Virginiano.

  Como os Virginianos preferem o controle à espontaneidade, sempre tive mais facilidade em me exprimir através da escrita do que da oralidade. Como advogada, exercitei mais os recursos do que os julgamentos, porque os recursos são mais lentos, e, na maioria das vezes são escritos. Escolhi fazer as minhas leituras astrais por escrito também, em vez de usar a plataforma digital Zoom ou de uma forma presencial. Adoro fazer leituras astrológicas às minhas conhecidas, porque, depois, posso adicionar algumas piadas. Se elas têm uma Lua em Carneiro, escreveria: “isto explica porque é que trata todas as conversas como um interrogatório”. Se elas tiverem uma quantidade de planetas em Capricórnio, eu diria: “isto é porque você passa todo o seu tempo na Soho House trabalhando em rede (networking).

  Nem sempre fui mázinha. Adorava dizer às pessoas quem elas eram de modo a que elas se rissem, mas, também que se sentissem orgulhosas. O mais giro acerca da astrologia é que há suficiente espaço de manobra em cada descrição planetária para elaborar um qualquer relatório. (Muito parecido à forma vaga como as leis são escritas e interpretadas, o que representa possibilidades e resultados infinitos). Imaginemos que alguém é Sagitário. Se gostasse dessa pessoa e quisesse que se sentisse bem consigo própria, diria: “você é um filosofo positivo, um intelectual otimista, curioso e divertido, o companheiro ideal de viagem e o convidado de uma festa”. Se alguém tivesse um ex Sagitário que quisesse que eu dissesse o piorio dele / dela diria: “os Sagitarianos são indelicados e foleiros, com vibrações do tipo feliz por estar aqui, com uma energia insuportável, provavelmente um viciado em sexo – e não do tipo divertido”.

  A astrologia tornou-se um modo de organizar o meu universo, fazendo, por sua vez, com que ele fosse menos assustador. Como muitos Virginianos, sou bastante ansiosa. Sempre fui. Algumas vezes mais do que outras. Em Los Angeles, onde vivo, é mais do que seco, é um sítio fantástico para os lagartos, mas não acolhedor para os humanos. Durante um período particularmente mau, o ano passado, fiquei convencida que LA me estava a matar. O meu apartamento é mesmo ao lado da autoestrada e, tinha a certeza que ao inalar os fumos dos carros 24/7 levar-me-ia a uma morte prematura. Se não morresse envenenada com dióxido de carbono, morreria na autoestrada, onde as pessoas conduzem como loucas, e, é necessária uma confiança imprudente. Ou um carro se enfaixaria no meu, ou iria perder a consciência ao volante devido ao pânico e chocar contra o separador central.

  Informei o meu terapeuta destes problemas, a suspeita que deveria deixar L.A., e viver em qualquer outro sítio mais calmo, verde, húmido e menos povoado. Ela falou-me da Cartografia Astral, mapas que indicam onde é que as influências astrológicas mostram oportunidades de crescimento ou desvantagens (Deus abençoe esta terapeuta Californiana fantástica.) Logo depois da sessão, introduzi a hora do meu nascimento numa website. Assim que percebi como é que se lê o mapa, aprendi que a minha linha de Júpiter passava mesmo no centro de Los Angeles. Júpiter representa prosperidade, boa sorte e milagres. Basicamente, sou abençoada aqui. Ao saber disto a minha ansiedade melhorou imenso. Sempre que sentia aquela fatalidade crescente na 405, lembrava-me que Júpiter me protegia. Se o quinto planeta desde o Sol estava ou não, na verdade, a me proteger era irrelevante.

  Todavia, a certo ponto, o meu interesse pela astrologia parecia que ia do “divertido” até ao “talvez um pouco doentio”. Em festas só conversava sobre isso. Se não soubesse o signo de alguém, passava-me um pouco dos carretos, começava uma perseguição implacável para descobri-lo, e fazia perguntas do género, “oh, você disse que gosta da primavera, então faz anos nessa altura?” Costumava adivinhar os signos de estranhos, personagens de ficção, lugares, e até mesmo objetos inanimados. O meu quarto era Caranguejo, confortável e acolhedor como um útero. A palmeira que via da minha janela era Leão, alta e orgulhosa, iluminando o meu dia. O meu iPhone era Gémeos, chato, mas viciante.

  Comecei por pensar muito sobre como os meus posicionamentos se relacionavam. O meu Sol em Virgem diria frequentemente ao meu ascendente Leão para me calar e pôr o soutien. O meu ascendente Leão responderia, arranja uma personalidade, perdedor. A minha Lua em Aquário interromperia, oh, bebés pomposos, o eu não existe. E o Mercúrio em Balança diria, vocês são todos muito sérios, conta lá o mexerico! O meu Vénus em Escorpião iria assustar calando todos com a afirmação, TUDO É TÃO SÉRIO COMO A MORTE. Dei por mim a usar a astrologia para me desligar do presente, das emoções, da intimidade. Costumava depreciar signos inteiros (tosse: Taurinos), meio a brincar, mas nem por isso, enquanto romantizava outros (tosse: Gémeos). Embora a astrologia tenha começado como um modo divertido de me aproximar dos outros, e encorajar-me, tornou-se posteriormente uma forma de julgar, criticar e isolar-me.

  A minha amiga adora me relembrar quando, enquanto víamos uma perseguição a alta velocidade na autoestrada de Los Angeles, eu gritava “Aquário”. Tudo o que conseguia ver, enquanto este acontecimento decorria, legitimamente perigoso, era um signo do zodíaco. A astrologia lembra-me o efeito anestesiante do Pinterest, o modo como os nossos olhos vitrificam enquanto categorizamos imagens. O mundo já não é mais assustador e aleatório, mas finito e ordenado. Se tem um problema com alguém, não é porque ambos fizeram algo errado, ou porque as vossas vibrações estão misteriosamente incompatibilizadas. É porque são do signo Touro. Ninguém morre sem motivo. Os Aquarianos apenas ocasionalmente tornam-se imprudentes na autoestrada. Simples. Sem mistério. Ninguém tem culpa.

  Sempre que sinto que vem aí uma obsessão negativa, algo me impele a começar a escrever sobre isso. Quando não conseguia parar de pensar sobre todos os meios em que a lei é fútil e negligente, canalizava essas meditações para o meu livro, Um Mau Advogado. A obsessão não é uma grande qualidade na minha vida pessoal – consegue com que seja uma pessoa chata para todos os que estão à minha volta – mas é uma excelente ferramenta para criar palavras numa página. Neste caso, comecei a escrever Exaltada, um romance escrito sob a perspetiva de uma astróloga cínica da Internet. A protagonista, Emily Forrest é parcialmente inspirada na criadora de memes astrológicos que sublocava o apartamento da minha amiga durante este período, uma ganzada solitária que não acreditava em astrologia, mas que descobriu que os memes sobre astrologia eram mais fáceis de fazer. Ao explorar a relação da Emily com a astrologia tornei-me mais sintonizada na minha relação com ela. A forma como alimentou as chamas dos meus piores hábitos. Da mesma forma que a advocacia me encorajou a ser mesquinha e argumentativa, a astrologia tornou-me ainda mais judiciosa e isolada do que o habitual. Mais para o final de Exaltada, A Emily contrata um hipnotizador para fazê-la para de pensar em astrologia. Não resulta. Não creio que a minha tentativa de exorcizar a minha obsessão pela astrologia tenha resultado também. Ao mesmo tempo que escrevo frases para este ensaio, troco mensagem com a minha amiga e escritora Grace Perry sobre a nossa teoria de que todos os maiores génios nasceram na Cúspide de Peixes e Aquário (Rihanna, Sally Rooney, Kurt Cobain …). Será que a astrologia é a minha amante tóxica que simplesmente não consigo abandonar? Ou será que estou apenas a dar mais importância ao mal do que ao bem, da forma como os humanos estão conectados para o fazer?

  Não tenciono descartar a astrologia ou a importância que ela tem na vida dos outros, e na minha, em alguns momentos. Sei que ela dá a muita gente, força, uma religião milenar numa sociedade ateia. Talvez um dia consiga ter com ela uma relação mais descontraída. Mas, entretanto, mantenho o antigo lema da socialite Paris Hilton: “The stars are blind.” – “O destino não se rege pelos astros.”

 

traduzido por Ivo Eduardo Correia

 

domingo, 24 de julho de 2022

 

Apontamentos sobre…

A revisão

Amy Bloom

“A revisão é a sua própria recompensa”.

  Tenho dois interesses – pessoas e histórias – e três competências: observação, empatia e palavras, para servir aqueles dois interesses. Estou interessada (poderia ter usado uma palavra mais forte) nas pessoas reais que fazem parte da minha vida (a minha família e os amigos) e estou ainda interessada nas histórias, as esquisitices e as exposições, de pessoas que não conheço bem, ou pessoas que não conheço sequer – apenas porque são pessoas. Quando oiço um homem que vai sentado à minha frente no comboio a dizer à sua criança, que parecia um querubim cheio de curvas, num tom de voz baixo e frenético de um criminoso encurralado, se fizeres isso – ou outra coisa parecida – outra vez, DIREI à tua mãe, quero continuar sentada atrás deles e não sair na minha estação. Uma amiga disse o seguinte acerca do seu pai (como podiam dizer acerca do meu), muitas vezes bruto, raramente errado. Essa frase vai fazer parte de uma história mesmo que tenha de arranjar uma cena de festa de casamento para isso. Bisbilhotar é uma parte importante da minha vida de escritora, como é olhar fixamente pela janela. Uma vez levei com uma bola de ténis na cara porque estava tão entusiasmada ouvindo uma mulher no outro court a ofender verbalmente o marido que me esqueci de usar a raquete. Às vezes, tomo notas. Sempre, quem me dera parar de tomar notas.

  Há uma regra para ouvir e observar o mundo à nossa volta, e em observar e conhecer-se a si mesmo. Quero ver e depois transmitir, a folha do carvalho em seu desajeitado desabrochar verde. Tudo o que tenho que fazer é observar, talvez de alguns ângulos diferentes. Para escrevê-lo, tenho que encontrar o vocábulo certo (verdejante, esmeralda, peridoto, verdete, …, também, nada de errado com o verde) e, para os efeitos da minha prosa, tenho que perceber quem está observando. Será que sou eu, será Deus, será o carteiro cansado que olha apressadamente, ou será a mulher solitária que vive no segundo andar de um apartamento cuja soleira da janela quase toca na árvore? Quando quero conhecer um ser humano tenho que ver o seu corpo, as suas roupas, a sua atitude, a sua postura, as suas feições, a forma como ocupa o espaço e tenho que tentar vê-lo o mais completamente possível, de tantos ângulos com a minha lente limitada de (mulher branca de meia-idade), mas depois me esforçar ainda um pouco mais. Como seria ser um deles, qual seria a sensação de usar as suas roupas, aquele roupão, aquele blusão molhado, aquele gorro de tricô? Vejo uma mulher jovem, alta, branca-azulada como leite magro, vestindo um macacão branco, sorrindo com um ar sonhador e o seu telefone toca, e oiço o som de uma mensagem de texto que acaba de chegar, e vejo os seus olhos em direção ao telefone, e depois o telefone ao ouvido, e o sorriso suave desvanece-se gradualmente, e o meu pensamento imediato é, seu sacana!

  Para mim, depois do prazer de observar, e do trabalho em imaginar, depois de me tornar outra pessoa e voltar para casa para mim, depois de escolher cuidadosamente, ouvir o ritmo das palavras, a cadência e o som maquinal de outras vozes, chego à melhor parte: a revisão. A revisão para mim é um alívio. É garantia; o lixo na página pode e será substituído; o estranho será amenizado, o embaraçoso será limado, e se isso ainda assim não ficar suficientemente bom, o embaraçoso será assassinado. (A revisão não é para os fracos de coração.) Posso não ser capaz de ver o outro lado da montanha, mas sei que está lá e se continuar a me arrastar (eliminar aquela frase, guardar aquela expressão), vou chegar lá. Às vezes, o parágrafo certo surge de mim e sinto-me grata por isso. (Raios, sinto-me grata quanto é uma boa frase). O resto do tempo, começo a fazer a revisão, às vezes leva um dia, muitas vezes, um pouco mais de uma hora. Fazer uma revisão é dar o devido valor ao trabalho, e, como escritora, se tivesse que escolher entre beber um café ou a revisão, escolheria a revisão. (Não me façam escolher.)

 

sábado, 23 de julho de 2022

 

A literatura de viagens acabou?

Morwari Zafar

Traduzido por Ivo Eduardo Correia

  O que os satélites e a Internet não fazem é dar uma voz à experiência. E é aí que a literatura de viagens faz a diferença.”

   A questão sobre o fim da literatura de viagens perseguiu-me durante semanas. Viajei muito, escrevi muito, mas o que significa escrever sobre viagens?

   O género, como me apercebi nas minhas cogitações, sofreu uma mudança palpável, mas continua relevante. A sua definição alargou-se num mundo onde o conhecimento e a experiência são instantâneos. Conseguimos procurar no Google o nosso caminho para os confins do globo – a nossa visão é superada pela profundidade ótica dos satélites a milhares de quilómetros de distância. Eles ajudam-nos a explorar todas as características topográficas da Mongólia ou ver ao vivo uma estrada em Union City, Califórnia. Mas o que os satélites e a Internet não fazem é dar uma voz à experiência. E é aí que a literatura de viagens faz a diferença. É uma selfie literária, uma reflexão marcada pelo tempo de uma experiência que vai para além da foto de uma pessoa, de um sorriso encenado ou de um estômago contraído. O género continua a ser produzido e consumido devido a um desejo humano intrínseco – a necessidade de se conectar e de ser compreendido.

  Pode-se argumentar que toda a escrita se encaixa no género da literatura de viagens. Mas a literatura de viagens compromete o autor e o leitor a uma certa intimidade que outros géneros não atingem. Porquê? Porque a literatura de viagens é epistolar por natureza. A literatura de viagens utiliza a viagem e o destino como referentes para comunicar algo maior – a nossa própria evolução do pensamento e pessoa à medida que damos importância a novos ambientes e às pessoas que encontramos ao longo do caminho.

  Talvez o aspeto mais relevante da literatura de viagens é que acontece, naturalmente, quando estamos longe. É um produto da distância. O meu primeiro texto de literatura de viagens foi uma carta aos meus pais quando estava na escola primária. Tinha à volta de onze anos e estava a escrever desde uma zona rural do Surrey, Inglaterra, onde os meus colegas de turma e eu estávamos em visita de estudo. Depois de desejar aos meus pais um feliz Nowruz (ano novo no Afeganistão) na língua Farsi e traduzido para Inglês:

  A viagem foi excelente, e chegámos em segurança. Os dormitórios são muito bons. Durmo no beliche de cima. Temos comida suficiente e sinto-me muito bem. Tenho imensas saudades vossas. Fizemos orientação e visitamos um campo de saibro.

 Nessa altura, já estava longe de um lar (Afeganistão) e me habituando a estar longe dos meus pais pela primeira vez. Cerca de duas décadas depois do meu relato impressionante de um dia de acampamento, mantinha um blogue de viagens. Começou quando vivi em Buenos Aires durante seis semanas por um capricho, e posteriormente, usei-o para partilhar outras experiências – explorando tecido cicatricial em Roma, encontrando a fé no Colorado e descobrindo belezas inigualáveis no Rio de Janeiro. Cada entrada do blogue tinha se iniciado como um email a um amigo; reflexões pessoais ao longo do dia que ondulavam de volta a casa ao encontro de aqueles que me eram mais queridos, e talvez aos estranhos que não conhecia, mas que tinha a esperança de vir a conhecer através da escrita. Reflexões de viagens que povoavam o vazio marcado pela ausência de casa com palavras e relevância. Que ligação pode sobrar entre seres sensíveis num mundo à parte sem qualquer forma de correspondência?

  A literatura é, assim, um meio intemporal, perpetuado pelo desejo de encontrar o mundo muito perto ou a grande distância dos nossos olhos. Ler e escrever sobre viagens é sobre como tocar a nossa própria alma na alma de alguém, um ato de reconhecimento catártico, que, simplesmente, elas existem. Nesse processo, conhecemos a nós mesmos, e, ao partilhá-lo, passamos a ser compreendidos. E assim, escrevo na esperança de, como uma imagem, as palavras deixem uma impressão indelével onde estamos mais vivos e ligados – na nossa imaginação.

 

quinta-feira, 21 de julho de 2022

 


 

Tomb of Sand é um romance em hindi de 2018 do autor indiano Geetanjali Shree. Foi traduzido para o inglês pela tradutora norte-americana Daisy Rockwell. Em 2022, o livro se tornou o primeiro romance traduzido de uma língua indiana a ganhar o International Booker Prize.

 

 

Túmulo de Areia (Tomb of Sand)

Traduzido por Ivo Eduardo Correia

1

  Um conto conta a si próprio. Pode ser completo, mas também pode ser incompleto, da forma como todos os contos são. Este conto particular tem uma fronteira e mulheres que vêm e vão como bem lhes apetece. Desde o momento em que existem mulheres e uma fronteira a história consegue se escrever a si própria. Até as mulheres que estão sós são suficientes. As mulheres são histórias em si, cheias de agitações e sussurros que flutuam ao vento e que se dobram a cada folha de erva. O sol poente reúne fragmentos de contos e transforma-os em lanternas brilhantes que ficam suspensas nas nuvens. Estas também farão parte da nossa história. O trajeto da história desenrola-se sem saber onde irá parar, virando ora para a direita, ora para a esquerda, às voltas e reviravoltas permitindo que tudo e alguma coisa se juntem à narração. Irá emergir de dentro de um vulcão, inchando silenciosamente enquanto o passado ferve no presente, trazendo vapor, cinzas, e fumo.

  Existem duas mulheres nesta história. Além delas, existem outras que apareciam e desapareciam, aquelas que continuavam a vir e a ir, aquelas que permaneciam sempre, mas que que não eram tão importantes, e aquelas que ainda não foram mencionadas, que não eram sequer mulheres. Por agora, digamos apenas que duas mulheres eram importantes, e destas uma estava a ficar mais pequena e a outra maior.

  Havia duas mulheres e uma morte.

  Duas mulheres, e uma morte. Quão bem iremos nos dar, nós e elas, já que todas nos sentamos juntas.

  Duas mulheres: uma mãe, uma filha, uma, crescendo para baixo e a outra, para cima. Uma ri e diz, estou a ficar mais pequena a cada dia que passa! A outra está triste, mas não diz nada quando se vê ficando maior. A mãe deixou de usar saris (traje típico da mulher indiana), agora que ela tem de enfiar mais de metade do tecido na cintura e levantar as bainhas das anáguas um pouco mais para cima a cada dia que passa. Será que se ficarmos cada vez mais pequenas, far-nos-á parecer um gato, para que possamos escorregar pelas pequenas rachas e escapar? Fazer um pequeno furo numa fronteira, e esgueirar-se através dela? Desenvolver um talento para a quase invisibilidade?

  Esta deve ser a razão pela qual a mãe conseguiu se esgueirar para o outro lado da fronteira, enquanto a filha ainda estava preocupada com o quão presas elas estavam. É possível que a mulher mais pequena estivesse realmente inocente quando se recusou a confessar qualquer crime da sua autoria, seja em relação a autorizações legais, a discussões sobre nomes, seja a acusações de furto.

  Aqueles que não compreendiam as suas razões, achavam-na maluca, talvez mesmo perversa. Suspeitavam que fosse enganadora, de propósito.

  Ela referiu que os homens comem o melhor e deixam os restos para as mulheres, não é verdade? Hmm? Falou sem medo? Então? Tem de ser sempre assim?

  Mas se olharmos os guardas fronteiriços olhos nos olhos, será que eles compreenderão? Atravessámos a fronteira e eles repreendem-nos.

  Ela ri-se em voz alta. Qualquer coisa que valha a pena fazer transcende fronteiras. Não devo fazer absolutamente nada?

  Não, eles contrapõem, e ninguém é tolo ao ponto de não saber isso. Até as cabras e as vacas sabem que se devem manter juntas. E a vossa visão não é assim tão má que não consigam ver, então como é que podem ser perdoadas?

  Quem é que está a pedir perdão! Ela dá gargalhadas e a filha que está cada vez maior chora. E é só isto que há para ver? Talvez eu própria já tenha visto uma ou duas coisas. Tentem ver a minha perspetiva pelo menos uma vez.

   Se ela caísse, não desejaria que fosse de cara para baixo. De onde quer que fosse a proveniência da bala, onde quer que a atingisse, ela cairia sempre para trás e ficaria deitada no chão. Regiamente. Os seus olhos repletos de céu.

   Deixa-me praticar, diria à sua filha.

   A mãe começara com soluços sem parar. Soluçava, soluçava e soluçava. Se a filha não estivesse naquele estado, ela teria desconfiado da veracidade ou da falsidade dos soluços. Não vão parar se beber água; dá-me uma palmada nas costas. A mãe exigiria. Se a palmada não for suficientemente forte, então, toma balanço e dá-me um pontapé, com estrondo! Tenta nas costas, no estômago ou nos lados, e assegura-te que caio de costas, de olhos abertos e a testa virada para cima; só aí os soluços vão certamente acabar. Era um remédio estranho, mas a filha fez o que a mãe lhe pediu. Ela pontapeou-a e pontapeou-a com força, e com esta nova estratégia a mãe continuava a cair no chão desamparada. Depois de um pouco de algazarra, os observadores começaram a rir à gargalhada, também. Consegues vencê-los? A velhota é demais. A mãe disse à filha que ela devia estar preparada.

  Enfim, abreviemos, o que aconteceu foi o seguinte: uma bala veio em sua direção, perfurou o seu corpo, atravessando-o e saindo do outro lado. Qualquer pessoa teria se estatelado de cara para baixo na lama, mas a Ma caiu de costas como se estivesse a dar uma cambalhota. Estava no chão com uma atitude de vitória, e, de uma forma elegante, com a cara para cima, como se estivesse reclinada numa cama macia e o céu a sua colcha.

  Aqueles que acham que a morte é um fim, acharam que isso era para ela. Mas aqueles que a conheciam bem sabiam que isto não era o fim; sabiam que ela tinha simplesmente atravessado mais uma fronteira.

  Por isso, não faz mal começar a história aqui mesmo, isto é, da forma como o estamos a fazer neste momento.

domingo, 17 de julho de 2022

 

Duas Mulheres Anónimas (Two Nameless Women)

Traduzido do Espanhol – Sarah Booker

Traduzido por Ivo Eduardo Correia

   Conseguia ouvir a água a correr assim que coloquei a chave na fechadura. Achei que a ia encontrar exatamente onde ela estava: na minúscula casa de banho, sentada na beira da banheira, com as mãos sob o fluxo de água quente. Estava a olhar fixamente para algo que eu não conseguia decifrar através da janela. Olhava insistentemente. Apenas se apercebeu que eu estava lá, quando fechei a torneira e apressadamente coloquei a toalha seca nas suas mãos quentes e vermelhas. “Olhe o que fez,” murmurei, tentando repreendê-la. “Parecem frangos recém depenados,” finalmente sorri, acariciando-as. Olhou para mim com um olhar vazio. Depois, pestanejou, e, inclinando a cabeça, olhou para as suas mãos. Levantou a direita até ao nível dos olhos, rodando-a para a inspecionar melhor.

“As mãos delas,” disse. “Eles cortaram as suas mãos.”

“Sim,” respondi enquanto, cuidadosamente, a levava em direção ao seu quarto de dormir. Depois de desligar a televisão ajudei-a a se sentar na cama para lhe tirar a roupa, calças largas e uma t-shirt de algodão e lhe vestir a camisa da noite de flanela com que costumava dormir. Fez-me sinal para lhe passar a escova do cabelo que estava em cima da comoda, e, assim que a segurou nas suas mãos, dedicou-se a escovar o seu longo cabelo grisalho. Parecia absorta, mais uma vez. A escova deslizava facilmente das raízes às pontas e depois fê-lo, novamente, uma vez mais.

“Desta vez eles também cortaram as suas pernas,” murmurou, olhando subitamente para mim.

“Sim,” respondi-lhe. “Vi nas notícias. Teremos de ter mais cuidado daqui para a frente,” concluí, dando-lhe algumas palmadinhas nas costas e oferecendo-lhe alguns comprimidos. De seguida fui à pequena cozinha e pus água a ferver. O tempo passa de forma estranha. Quando a chaleira começou a chiar, um som que me lembra sempre a sirene da polícia, não fazia a mínima ideia do que tinha estado a pensar. Fiz-lhe um chá de flor de laranjeira porque sabia que era um dos seus preferidos.

“E cortaram-lhes o cabelo, também,” disse-o como se fosse para si própria ao tomar o primeiro gole com uma calma inusitada. Virou-se para olhar para mim, e, apercebendo-me que estava a ser olhada, sorri para ela. Nunca sei o que realmente fazer nestas situações. Quando desliguei a luz do quarto de dormir, a velha senhora já estava a dormir sob os cobertores. A sua respiração constante, e as suas pestanas imóveis.

O edifício onde vivíamos era na verdade sombrio, mas tinha a vantagem de ser central. Podíamos ir facilmente a qualquer sítio sem precisar de carro, íamos de autocarro ou de metro quando precisava de levá-la ao hospital para os exames de rotina. Existiam imensos restaurantes na redondeza, de onde podíamos encomendar comida sem pagar a taxa de deslocação. Existiam lavanderias, uma estação de correios e uma esquadra de polícia. Consigo ver tudo isto das janelas do seu quarto andar. As luzes vermelhas, os semáforos.

Naquela noite sentei-me um pouco no seu cadeirão preferido antes de terminar a visita. Não sabia ao certo como é que ela ocupava os seus dias, sozinha, trancada no labirinto da sua própria cabeça, mas conseguia compreender as suas atividades nos indícios que ela deixava para trás: a televisão ligada, a porta do frigorífico aberta, um par de facas no balcão da cozinha. A sua família praticamente a esqueceu, visitavam-na, de vez em quando, especialmente no seu aniversário. Ela recebia um cartão ou dois ao longo do ano. Uma carta. Olhei pela janela, da mesma forma que a tinha visto fazer tantas vezes. A cidade tremia lá fora. Dava essa impressão de qualquer modo. Coloquei as pernas no divã e recostei-me no apoio de cabeça. As rachas no teto formavam um mapa ou uma floresta de árvores retorcidas ou uma rede de pesca onde um prisioneiro teria de lá cair. Fechei os olhos, como a velha senhora, e achei que talvez estivesse tão cansada quanto ela. Ou tão perdida. É mesmo necessário viver tanto? Abri os olhos e benzi-me antes mesmo de me por em pé. No escuro, o apartamento parecia um museu. As fotografias. Os tapetes. As cortinas. As colheres e os garfos. Os vasos. O papel de parede. Cada objeto cuidadosamente preservado. Não tocar. A mesa. As cadeiras. Não pude deixar de me perguntar quem é que acabaria por ficar com tudo isto no final. Apanhei o saco plástico onde tinha um pão e fatias de fiambre para fazer uma sandes. Depois de dar uma última olhadela no apartamento, saí e fechei a porta. Desci as escadas devagar até ao segundo andar. Qual a duração da eternidade medida em passos?

Na televisão continuavam a passar a mesma notícia. As raparigas mortas. Os sinais de tortura. A pergunta persistente sobre os seus nomes. Evitava olhar para as imagens, mas ouvia-os a recontar os acontecimentos a partir da cozinha. Uma festa que correu mal, um táxi, uma viagem para a eternidade. As sirenes da polícia interromperam os meus pensamentos. A água a ferver. Ao barrar a maionese no pão, imaginava o céu azul sobre os seus corpos. A luz solar, vertical como uma pá sobre a sua pele. A luz solar quando choca com os ossos. As bocas, abertas. Todos aqueles dentes preciosos. Caí para uma cadeira. Olhei para a parede. Com a faca ainda na minha mão direita, inerte como a estátua que eu já me tornara, pensei como é que elas não tiveram tempo de se sentirem cansadas. Pensei como teriam sobrevivido se tivessem sido salvas, podiam descansar as pernas no couro rijo do divã mesmo no centro de um quarto solitário.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

 

Fantasmas

Adam Foulds

Traduzido por Ivo Eduardo Correia

    A minha tia avó, Esther, ao visitar a primeira instituição pública social de apoio à comunidade do mundo em Whitechapel, deixou, por breves momentos, a excursão em grupo para caminhar através de uma entrada que dava para uma varanda, a partir da qual, ao olhar para baixo, avistou pessoas em vestes históricas a representar, o que ela pensava ser, uma espécie de peça. Ao se virar para chamar o marido, ela deu-se de conta que, inexplicavelmente, estava em frente a uma parede sem qualquer porta, embora, mais tarde, a guia confirmasse que teria havido uma há um século e tal atrás.

    A minha avó pensou que esta era uma história das habituais em Esther, que, de acordo com a minha avó, aparentava muito mais do que as suas faculdades banais. A primeira vez que a Esther conheceu a sua futura nora, a jovem de cabelo escuro, usava um vestido de noiva e um véu branco resplandecente que desapareceram num piscar de olhos e foram substituídos pelas suas roupas normais. A minha avó era uma pessoa mais prática. Não sabia cantar nem tocar qualquer instrumento. Quando era pequena no East End em Londres, ela via pessoas vestidas com roupas gris e antiquadas entre a multidão. Estas pessoas pareciam doentes e esfomeadas e a tentar chamar a atenção dos transeuntes, puxando as suas mangas, e correndo atrás delas na multidão, com atitudes suplicantes a pedir esmola e outras coisas. Uma delas captou a atenção da minha avó, estava em pé, parada, olhando diretamente para trás e … desapareceu, simplesmente.

     A minha irmã mais velha, de cerca de três anos, na altura, entrou a correr em casa vinda do jardim para dizer à minha mãe que o tio Harry estava lá fora, sentado numa das suas cadeiras, a sorrir para ela. (Sempre tive uma imagem mental bem clara deste encontro, embora, obviamente, não tenha assistido ao encontro: A camisa branca do Harry com um colete visível por baixo, e suspensórios, e o sol a brilhar levemente na sua careca castanha, na sua cara simpática, mas maciça a qual emanava amizade e paz.) A minha mãe começou por explicar que ele não estava lá, e, naquele preciso momento, o telefone tocou no hall de entrada dando a notícia da sua morte.

     Algumas semanas depois da morte do meu avô, o meu pai estava na Sinagoga e ao abrir o armário ornamentado que continha os pergaminhos sagrados da Torá, eis, quando, ele sentiu o meu avô a agarrar o seu braço. O meu avô foi à Sinagoga a vida inteira. Aqueles que estão familiarizados com estes locais, edifícios discretos em ruas comuns de Londres, conseguirão imaginar o conforto que ele sentia no seu interior, o conforto destas modestas interpretações de grandiosidade divina – bancos de madeira, uma mesa com os livros das orações com os nomes dos doadores colados no interior das capas, uma cortina de veludo em frente ao armário e sobre a tribuna com tecidos bordados a prata e ouro formando palavras hebraicas ou as estrelas de David, ou um pequeno leão de Judas, e sinos de prata tilintantes nas pegas dos pergaminhos. Ele conhecia de cor as cerimónias e conseguia assistir a elas mesmo em devaneio ou durante uma conversa com alguém. E, por isso, não é surpresa que ele aparecesse lá, e não em todos os outros sítios.    

    Se o meu avô quisesse te dizer algo, ele apertar-te-ia primeiro o antebraço a fim de chamar a tua atenção. “Ei!”, ele diria, ou “Ei, ouve!” ou “Ei, quero te dizer algo” ou “Ei, passa-me o sal, por favor!” Ele gostava de sal e de rábano. Ele apertava, ele abraçava, ele tinha acessos de fúria, e era de humores. Os seus olhos costumavam, às vezes, transbordar de afeto. Na Sinagoga, ele era muitas vezes convocado para o mitzvah da abertura do armário onde estão os pergaminhos sagrados da Torá, e, é por isso que o meu pai pensou que ele o agarrou nesse preciso momento. Era inequívoco, disse; era ele, sem dúvida.

   Eu próprio já vi algumas coisas. Eram menos claras, menos exteriores, eram mais pensamentos que caíam nos meus pensamentos vindos de algures. Uma vez foi a cara de um amigo que tinha acabado de morrer, a sorrir, radiante, completamente sem dores, o centro de uma vasta e irracional reafirmação. Permaneceu comigo, na minha visão durante uns instantes e depois desapareceu. Depois disso, consegui imaginá-lo de novo, mas não consegui mais me sentar simplesmente e olhar para ele. Ele já se fora. Recorro a esta memória de vez em quando. Confio nela, e apesar do meu receio, das minhas dúvidas, desvanece-se até desaparecer. Por razões profissionais e pessoais – casamento, vivo agora noutro continente, longe de todas aquelas pessoas, num mundo alheio a elas. Nada aqui remete a elas a não ser eu. Lá fora neva, abrandando o tráfico. Caras aparecem e desaparecem por detrás das máscaras. À noite, os números dos mortos rastejam ao longo do botão do ecrã da televisão. Se pudesse, atravessaria de imediato estas paredes.

 

O Livro da Forma e do Vazio

Ruth Ozeki

Vencedora do Women’s Prize for Fiction 2022

Traduzido do original por Ivo Eduardo Correia

No início

   Um livro começa algures. Uma letra corajosa tem de se voluntariar para ser a primeira, esperando na fila como um ato de fé, a partir do qual a palavra cria coragem e segue, levando uma frase ao seu despertar. A partir daqui um parágrafo acumula palavras e, em breve, uma página, e o livro avança encontrando uma voz, pedindo para existir.

   Um livro tem de começar algures e este começa aqui.

 

Um rapaz

    Sshh … ouvi!

    É o meu livro, e está a falar convosco. Conseguirdes ouvi-lo? Não faz mal se não o ouçam, entretanto. Não é culpa vossa. As coisas falam muito, mas se os vossos ouvidos não estiverem sintonizados, tende vós de aprender a ouvir.

   Podeis começar por usar os olhos porque é mais fácil. Olhai para todas as coisas à vossa volta. O que vedes? Um livro, obviamente, e obviamente, o livro está a falar convosco, por isso, tentai algo mais desafiante. A cadeira na qual estais sentados. O lápis no bolso. O ténis no pé. Ainda não conseguis ouvir? Então, ficai de joelhos e colocai a cabeça no assento ou tirai o sapato e colocai-o junto ao ouvido – não, esperai, se houver pessoas à volta, elas vão pensar que estais malucos, por isso tentai com o lápis primeiro. Os lápis contêm histórias em si, e são seguros a menos que enfiais a ponta no ouvido. Colocai-o perto da cabeça e prestai atenção. Conseguis ouvir o sussurro da madeira? O fantasma do pinho? O murmúrio do chumbo?

   Às vezes é mais do que uma voz. Às vezes é um coro de vozes inteiro a erguer-se duma simples coisa, especialmente se é um coisa feita por uma grande quantidade de fabricantes diferentes, mas não fiqueis amedrontados. Acho que depende do tipo de dia que estava a ter em Guangdong ou no Laos, ou onde quer que seja, e se estivesse a ter um bom dia na velha fábrica, se estivesse a desfrutar de um pensamento agradável naquele preciso momento em que aquela anilha especifica que vinha aos tombos ao longo da linha de montagem e passasse pelos dedos do trabalhador, então aquele agradável pensamento irá se agarrar ao orifício. Às vezes não é tanto um pensamento, mas uma sensação. Uma sensação agradável e calorosa, como o amor, por exemplo. Ensolarada e amarela. Mas quando é uma sensação triste ou zangada, uma que fica atada no vosso sapato, então é melhor ter cuidado porque aquele sapato pode fazer merda da grossa, como obrigar-vos a marchar até à porta de uma loja da Nike, ou, onde podereis, por exemplo, acabar por destruir a montra com um taco de basebol feito de madeira louca. Se isso acontecer, continua a não ser culpa vossa. Apenas desculpai-vos à montra, dizei, lamento pelo vidro e o que quer que façais, não tenteis explicar. O polícia que vos der ordem de prisão não quererá saber das condições horríveis na fábrica de tacos de basebol. Não quererá saber das motosserras ou do freixo resistente de que o taco é feito, por isso, calai-vos, simplesmente. Ficai calmos, sede educados, lembrai-vos de respirar. É importante não ficar preocupado, porque aí as vozes irão ficar em vantagem e controlar as vossas mentes. As coisas são carentes. Ocupam espaço. Querem atenção, e levar-vos-ão à loucura se o deixardes. Lembrai-vos, apenas sois como um controlador de tráfico aéreo, não, esperai, sois como um maestro de uma grande banda de metais, composta por todos os materiais brilhantes, coloridos e vistosos do planeta, e estais flutuando no espaço sideral, sentados neste grande monte de lixo que é a Terra, com o cabelo com gel, penteado para trás, e o fato limpo e elegante, e a batuta no ar, rodeados por todas as coisas impacientes, e por um breve e bonito momento, todas as vozes se silenciam, à espera que baixais a batuta.

    Música ou loucura. Tudo depende completamente de vós.