Por quem nos apaixonamos
- Público - Edição Lisboa
- Miguel Esteves Cardoso
As pessoas por quem nos apaixonamos mostram o que queremos. Mais do que qualquer outra coisa, mais do que qualquer psicanálise, mostram-nos o que escolhe a nossa alma — a nossa alma desprevenida, e cega, quando está livre de considerações práticas, de juízo, de medo, de cálculo.
Lembro-me de ter cinco ou seis anos e de ter ficado estarrecido quando li, numa quadra que uma namorada me deu, o verso Love is blind.
Pareceu-me tão violento falar assim do amor, que eu julgava ser a vontade de abraçar os meus pais e os meus gatinhos, mais a perdição que sentia quando estava longe deles.
Levei décadas a perceber que o amor é mesmo cego — que se ri das tentativas de nos dizer quem é que devemos ou não devemos amar. Mesmo assim (as apps de encontros são a mais recente iteração), achamos — incrivelmente — que não se perde tempo em tentar conduzir as coisas do amor no sentido em que nos dá mais jeito.
Quem é que devo escolher para partilhar a minha vida? Porque é tão fácil a toda a gente responder a essa pergunta, quando são outros, mesmo desconhecidos, que perguntam? Talvez a única esperança seja alterar a pergunta, para lhe dar uns pozinhos de realismo. Por exemplo: em quem devo arriscar para partilhar a minha vida? Quem é que devo escolher para negociar e discutir — a todo o momento — a minha vida?
Na verdade, não escolhemos a pessoa que amamos. Apenas escolhemos o que vamos esperar dela. É uma escolha feita sem justiça e sem realismo, já que a pessoa já está escolhida e, a bem dizer, não temos direito a contrapartida.
Muita sorte tivemos nós em ter conseguido apanhar a pessoa que amamos: o resto é o vale de lágrimas que merecemos. Também não temos influência sobre a nossa própria alma: seria como a chuva mandar na chuva.
Talvez a melhor estratégia seja aprender a viver com a alma (e o amor) que se tem, deixando-a ser como ela insiste em ser, e guardando as nossas energias para a minimização regular e metódica dos estragos.
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