O desfalque da imaginação
- Público - Edição Lisboa
- Miguel Esteves Cardoso
Há uma discussão permanente num casal nosso amigo em que a mãe gosta de fantasiar com a filha de quatro anos nas explicações que lhe dá sobre o mundo, mas o pai acha mal, preferindo uma base científica. A mãe tinha explicado a chuva à filha da seguinte maneira: a chuva é o chazinho que a Terra toma quando está cheia de frio, para ficar mais quentinha. A miúda continua a odiar a chuva, mas reconhece que fica menos frio depois de uma chuvada.
O pai está muito descontente. Queria falar da evaporação e na água que bebemos. Acha que a história do chazinho que a Terra toma vai ser como a do Pai Natal: vai ser uma desilusão quando souber que não é verdade; e que pode prejudicar o desenvolvimento de uma atitude científica.
Há livros muito bonitos para crianças que explicam a realidade à nossa volta. Mas não deixam de parecer propaganda.
A fantasia é preciosa não porque apresenta um mundo que não corresponde à realidade, mas porque puxa pela imaginação. A imaginação é o que nos defende da crueza da realidade. Dizer que uma coisa é valiosa só por ser real é justificar todas as selvajarias que existem.
Noto que os adultos agora falam com as crianças como se fossem pequenos adultos tremendamente estúpidos e mal informados, a quem é urgente explicar o funcionamento das coisas em palavras muito simples, de forma a impedi-las de fazer má figura na televisão ou cair dentro de um poço.
Na verdade, são as crianças que dão aos adultos uma oportunidade de largar momentaneamente os espartilhos da ciência e da racionalidade e voar pela imaginação sem haver um júri chato de pares a dar notas e a apontar inconsistências.
Sabemos lá se todos os adultos apaixonados pelos romances e jogos fantásticos não são uma consequência de não terem fantasiado condignamente quando tinham idade para isso?
Para fantasiar como deve ser, é preciso não saber ao certo que não é verdade. E isso só acontece quando se é criança. O prazer está em pensar que pode ser verdade.
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