Feliz de quem não escolhe
- Público - Edição Lisboa
- Miguel Esteves Cardoso
Ao escolher quais são os livros velhos que vão para prateleiras distantes e inalcançáveis, para arranjar espaço para os novos, ocorre-me que é detestável escolher, e que o ser humano, esperto e preguiçoso, adia quanto pode o momento da escolha.
Se tivéssemos espaço infinito, com pessoal especializado para manter a higiene e actualizar o inventário, faríamos o que nos está na alma, que é acumular.
A roupa, quando os armários são muitos e a pressa é nenhuma, volta a estar na moda passados uns meros 20 anos, pelo que é um investimento preservá-la e um prazer replicar, quando comentam que somos escravos dos estilistas: “Esta porcaria? Comprei-a em 1995, ainda o Versace estava vivo.”
Tendo de escolher, quanto mais tarde melhor. O adiar é divino: não está Deus sempre a adiar os castigos com que ameaça os infiéis?
Por isso é que os ricos têm aviões só para eles e, quando são obrigados a voar com a piolheira, decidem ao último minuto.
Escolher uma viagem a três meses de distância, só para poupar uns cobres, só não é deprimente para os pobres camponeses como nós.
Não gostamos de condenar nada à morte, ou ao esquecimento, ou à segunda fila, ou a um saco de lenha que “por enquanto” fica na garagem, caso tivéssemos.
A escolha empobrece-nos. E revela a nossa pobreza. A escolha é desleal. A escolha é o resultado da nossa ganância e da nossa volubilidade.
Que alívio seria poder dizer à empregada da loja que tão generosamente nos atura, enquanto hesitamos entre dois tons de verde: “Olhe, desisto: levo todas!”
Dizemos “Não gosto de deitar nada fora” como se fôssemos modelos de preservação e de sustentabilidade. Mas o que somos tem oito letras: forretas.
Os forretas gostam de pagar pouco pelo que adquirem, mas isso é apenas para sobrar mais para poderem adquirir mais coisas. Mas odeiam prescindir das coisas de que já não precisam. Inventam razões para se agarrar a elas. Mas, infelizmente, as casas têm paredes e tectos e não cabem lá todas.
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