A irmã da Dona Inveja
- Público - Edição Lisboa
- Miguel Esteves Cardoso
Quando se vai a casa de alguém na mira de comprar uns livros, é-se obrigado a fazer de turista, e a sofrer um passeio pela biblioteca, vaidosamente comentada pelo senhor dono. Imagino que seja a mesma coisa com as pinturas ou as antiguidades.
Tenho reparado num fenómeno muito estranho: é raro que os coleccionadores falem das obras em si. Falam sobretudo das dificuldades e das peripécias das aquisições. O acto de compra surge como uma estocada final, quase sempre inesperada e brilhante, que incide sobre um adversário maquiavélico.
Aquele livro tanto poderia ser um camafeu inca ou a presa de um mamute: o que interessa é a proeza de trazê-lo para casa, usando, para além do dinheiro (que é sempre muito menos ou muito mais do que vale), todas as artimanhas ao alcance da humanidade.
Ocorreu-me durante um destes périplos que a aquisição destes objectos tem pouco a ver com exibicionismo monetário.
Aquilo que revelam é uma espécie de inveja — mas uma inveja ao contrário, porque é a inveja de quem tem o que é invejável.
É uma inveja dupla: é uma “binveja”. O coleccionador quer ter o que os outros querem ter, mas não conseguem ter, porque lhes falta o dinheiro, ou a paciência, ou a perseverança, ou a habilidade negocial.
É a inveja de quem quer despertar a inveja alheia. Daí o endeusamento da raridade, como se o valor artístico tivesse alguma coisa a ver com a raridade — como se a lírica de Camões fosse mais valiosa se só existisse o manuscrito.
A binveja vive da cobiça frustrada dos simples invejosos. É um prazer parasita, prepotente e sádico, que celebra a exclusividade acima de tudo: o poder de excluir toda a gente de um simples prazer, por força da força do dinheiro.
A inveja quer que as pessoas que têm coisas boas deixem de as ter. Porque não as merecem e não sei que mais, porque quem as merece é o pobre invejoso, obviamente.
Mas a binveja não é mais bonita: vive dessa energia invejosa. Como não sabe o que tem, vive da cobiça dela.
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