domingo, 25 de maio de 2025

Vera Ramalho Psicóloga clínica - Por uma sexualidade baseada no afeto!

 

Por uma sexualidade baseada no afeto

Não sendo a criança desprovida de experiência sensorial, o seu corpo reage aos estímulos que vê ao imitar os adultos, despertando-a para uma sexualização inadequada para o seu nível de desenvolvimento

A visualização por crianças de vídeos no Tik Tok e no YouTube de cantores de funk ostentação, marcados por um forte cunho sexual, é um tema que deve ser acautelado pelos adultos, dadas as possíveis consequências na expressão da sexualidade.

Entenda-se, desde logo, que sexualidade não é sexualização ou erotização. A expressão da sexualidade na infância é esperada e está presente no desenvolvimento normativo através de comportamentos como a curiosidade sobre os órgãos sexuais, o toque, a masturbação, etc… São formas naturais de a criança conhecer o seu corpo. Contrariamente, a sexualização é algo externo, que expõe a criança a comportamentos inadequados para a sua idade e compreensão, com potencial de causar confusão emocional. Tal acontece nos vídeos que mostram um jogo de sedução, com uma sensualidade que objetifica a mulher, ao som de uma música em que é clara a intenção dos envolvidos: “Viciei na sua sentada, só você faz gostoso (...).”

A sociedade parece estar de tal forma insensível a alguns temas que acaba por normalizá-los e romantizar comportamentos inapropriados para as crianças. Algumas pessoas até consideram engraçada a reprodução pela criança de músicas repletas de estereótipos e gestos que transmitem valores distorcidos sobre a sexualidade — “(...) Roça, roça em mim.”

“Qual é o problema? Ela não percebe a letra!” Ainda bem! Em consequência da imaturidade cognitiva e emocional, a criança pequena não percebe mais de metade do significado das palavras, no entanto, é capaz de associar o que ouve com o que é representado no vídeo e a sensação de prazer no rosto dos protagonistas. Não sendo a criança desprovida de experiência sensorial, o seu corpo reage aos estímulos que vê e sente ao imitar os adultos, despertando-a para uma sexualização que não se coaduna com o seu nível de desenvolvimento e para uma compreensão errada do que é a sexualidade saudável.

Em consequência da crença de que estes vídeos representam mera diversão e do orgulho dos adultos nas crianças que reproduzem tão bem aquilo que consomem, assistimos na Internet a coreografias de crianças que exibem movimentos e sons erotizados e desapropriados para a idade.

Importa refletir o quanto estas músicas e vídeos vão contra o direito a uma infância promotora de um desenvolvimento emocional e social ajustado. Sem falar na proteção física e da imagem das crianças que é divulgada nas redes sociais vezes

Assistimos na Internet a coreografias de crianças que exibem movimentos e sons erotizados e desapropriados para a idade sem conta e vista por todos os tipos de pessoas, deixando-as mais vulneráveis a predadores sexuais. O que a criança vai sentir e pensar sobre si mesma quando, no futuro, se deparar com um vídeo seu a cantar e a dançar este tipo de música? O problema aumenta quando decide procurar na Internet o significado daquilo que ouve, sob o risco de deparar-se com vídeos piores. A normalização e o enaltecimento deste tipo de música propiciam, ainda, que seja a criança a carregar vídeos e fotografias autogeradas nas redes sociais.

Portanto, não é engraçado nem fofo. E não é só uma dança e uma música pateta, é erotização despropositada.

As consequências do acesso a este tipo de conteúdos no desenvolvimento da criança incluem, por exemplo, a distorção sobre o que é a sexualidade saudável; a influência negativa na forma como a criança se relaciona com o seu corpo e como permite que os outros se aproximem; o valor que atribui ao seu corpo em reconhecimento do respeito que merece, o risco de sofrer violência sexual. O toque, por exemplo, influencia a emocionalidade e o desenvolvimento do afeto e também está ligado à sexualidade, despertando sensações agradáveis, mas o tipo de toque que se vê nos vídeos em causa associam-no exclusivamente ao sexo.

O que fazer?

A proteção das crianças cabe aos adultos e muitos pais têm feito um esforço para reduzir o acesso dos filhos a estas músicas e vídeos, embora seja certo que é impossível controlar tudo o que os mais novos veem. Não existe uma forma simples para lidar com esta situação, na medida em que a parentalidade numa era digital, como hoje vivemos, é um desafio. A família e a escola devem manter-se informados e envolverem-se ativamente na prevenção de comportamentos de risco para a criança.

Importa ensinar a criança a proteger-se e a desenvolver um sentido crítico, mas para isso é preciso comunicar bem com ela. A família deve tentar criar desde cedo canais de comunicação abertos que permitam conversas sobre todos os assuntos, sem receios nem vergonha, desde que adequados à idade e compreensão da criança. Apenas num espaço seguro a criança conseguirá expor as suas dúvidas, questionar a sua experiência e pedir ajuda. Fale com calma, sem mostrar medo das palavras e recorra a livros e materiais lúdicos adequados às crianças.

É preciso transmitir conhecimentos sobre a educação sexual, mas este continua a ser um tema tabu para muitas famílias, pior, a sexualidade mantém-se remetida para segundo plano. Muitos pais e professores não estão à vontade para abordar questões ligadas a educação sexual das crianças, em parte, porque não tiveram este modelo na infância, nem formação adequada, mas também porque receiam que, ao falar, despertem as crianças para o sexo. A educação sexual não é incentivar o sexo, mas sim ajudar as crianças a compreenderem a pessoa como um todo, incluindo o corpo, as relações, os valores, os afetos, os pensamentos, as emoções, os comportamentos. Envolve a definição de limites, a identificação do que são comportamentos abusivos, o consentimento, o desenvolvimento da autonomia, o respeito pela privacidade do corpo e a empatia pela diferença de orientações sexuais e identidades de género.

Também merecedora de investimento dos adultos junto das crianças é a educação digital, na medida em que a criança que navega com segurança na Internet tem maior probabilidade de evitar a exposição a situações perigosas. Os pais devem combinar o diálogo aberto, a educação digital e as ferramentas de proteção, monitorizando o que as crianças veem com frequência como medida de prevenção. Podem dialogar com os filhos sobre o que veem e explicar que há vídeos na Internet que mostram o corpo de uma forma desrespeitosa, que não são para crianças. Além disso, devem deixar claro que tudo o que ela encontrar que cause desconforto ou confusão é porque não é bom e deve ser relatado aos pais.

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