A deformação profissional
- Público - Edição Lisboa
- Miguel Esteves Cardoso
Escrever, pintar e fazer música são actividades que dão prazer. E está cientificamente provado que fazem bem ao nosso cérebro. E é por aqui que deveríamos ficar. Não basta uma coisa dar prazer e fazer-nos bem? Esta conjunção não é já irresistível?
Para além do mais, escrever e pintar deixam uma coisa feita que pode ser apreciada, ou continuada noutra altura. E, para a música que façamos, basta gravá-la e também fica à nossa espera. Deveríamos ensinar todas as crianças a escrever, a pintar e a fazer música — e ensinar bem, durante largos anos — porque são três coisas boas que toda a vida poderão fazer nos tempos livres. Escrever, pintar e fazer música são coisas que dão prazer e que nos fazem bem à cabeça durante todos os anos da nossa vida.
E, no entanto, tragicamente, desencorajam-nos de escrever, pintar e fazer música ainda na nossa adolescência, deixando-nos pendurados durante o resto da vida. Porque é que nos desencorajam? É porque não nos dá prazer? É porque não nos faz bem?
Não, desencorajam-nos porque acham que não somos bons a escrever, a pintar e a fazer música. Mas o que é que tem ser bom ou mau com o prazer de criar?
O que é que interessa a opinião dos outros — para mais de outros que também foram desencorajados de praticar as artes? Desencorajam-nos porque acham que não vamos ganhar dinheiro a escrever, a pintar e a fazer música.
É sempre o dinheiro a mandar, mesmo quando não tem nada que mandar.
Digamos que passamos 40 horas por semana a trabalhar, 56 a dormir e 6 em transportes. Restam 66 horas. Porque não tirar 14 para escrever, pintar e fazer música? Ou então finjamos que passamos todo o ano sem uma única hora livre, dispondo apenas de um mês de férias.
Ficará esse mês é para escrever, pintar e fazer música. Já nos faria muito bem. As coisas boas não têm de ser profissões. Pelo contrário, ganham em não ser. Não temos de ser bons no que fazemos. Temos é de as fazer porque nos fazem bem. E porque são boas.
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