segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Miguel Esteves Cardoso no Público 03-02-25

 

Somos todos entes

Alíngua tem de ser batida, como um tapete. Tem de ser sacudida para soltar a poeira que deixou acumular, a ver se as palavras recuperam a cor que tinham. A língua portuguesa, como todas as línguas, é pisada por toda a gente, atraindo tanta sujidade que, a certa altura, é difícil distinguir a lã da lama.

Felizmente, as línguas lavam-se com facilidade. As palavras, depois de tomarem banho, ficam como novas, prontas para usar sem acrescentos e sem douradinhos.

As palavras lavam-se com outras palavras. Despem-se e voltam a brilhar. Pode ser com poesia, pode ser com lógica, pode ser com brincadeira. As palavras têm tantos agentes de limpeza como uma drogaria.

A última vez que ouvi lavar uma palavra foi num corredor de um hospital. A lavagem foi feita por uma adolescente com o nariz enfiado no telemóvel.

A conversa era sobre o nome que davam aos desgraçados que, como nós, estavam à espera de mostrar as maleitas a um médico.

Eu defendia a palavra “doentes”, mas estava a levar muita porrada – até me chamaram paternalista. Uma senhora disse “Era o que faltava: os médicos não são menos doentes do que nós!”

A discussão até tinha graça - afinal só estava a ser mantida para ajudar a passar o tempo -, mas depressa percebi que as definições estavam a ser defendidas conforme as velhas clivagens políticas de sempre.

“Nós somos clientes!”, asseverava um, “somos nós que pagamos esta merda”: “Não, somos utentes”, dizia outra. “Olhe, pacientes somos de certeza”, gracejou o pobre diabo a quem tinha calhado fazer esta piada obrigatória.

Foi aí que a adolescente levantou os olhos e disse:

“Seja como for, somos todos entes”. Ficámos calados a olhar para ela. Estaria a ler ficção científica? Estaria pedrada?

Só quando cheguei a casa é que lhe dei razão. Mas fiz mal. Sim, somos todos entes. Mas as palavras servem para distinguir os entes um dos outros. Um doente é diferente de um cliente, de um utente ou de um paciente.

É a diferença que tem de ser defendida.


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