Somos todos entes
- Público - Edição Lisboa
- Miguel Esteves Cardoso
Alíngua tem de ser batida, como um tapete. Tem de ser sacudida para soltar a poeira que deixou acumular, a ver se as palavras recuperam a cor que tinham. A língua portuguesa, como todas as línguas, é pisada por toda a gente, atraindo tanta sujidade que, a certa altura, é difícil distinguir a lã da lama.
Felizmente, as línguas lavam-se com facilidade. As palavras, depois de tomarem banho, ficam como novas, prontas para usar sem acrescentos e sem douradinhos.
As palavras lavam-se com outras palavras. Despem-se e voltam a brilhar. Pode ser com poesia, pode ser com lógica, pode ser com brincadeira. As palavras têm tantos agentes de limpeza como uma drogaria.
A última vez que ouvi lavar uma palavra foi num corredor de um hospital. A lavagem foi feita por uma adolescente com o nariz enfiado no telemóvel.
A conversa era sobre o nome que davam aos desgraçados que, como nós, estavam à espera de mostrar as maleitas a um médico.
Eu defendia a palavra “doentes”, mas estava a levar muita porrada – até me chamaram paternalista. Uma senhora disse “Era o que faltava: os médicos não são menos doentes do que nós!”
A discussão até tinha graça - afinal só estava a ser mantida para ajudar a passar o tempo -, mas depressa percebi que as definições estavam a ser defendidas conforme as velhas clivagens políticas de sempre.
“Nós somos clientes!”, asseverava um, “somos nós que pagamos esta merda”: “Não, somos utentes”, dizia outra. “Olhe, pacientes somos de certeza”, gracejou o pobre diabo a quem tinha calhado fazer esta piada obrigatória.
Foi aí que a adolescente levantou os olhos e disse:
“Seja como for, somos todos entes”. Ficámos calados a olhar para ela. Estaria a ler ficção científica? Estaria pedrada?
Só quando cheguei a casa é que lhe dei razão. Mas fiz mal. Sim, somos todos entes. Mas as palavras servem para distinguir os entes um dos outros. Um doente é diferente de um cliente, de um utente ou de um paciente.
É a diferença que tem de ser defendida.
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