Adolescência: a tragédia familiar e social
É esperado que os adolescentes tenham uma gíria própria, não sendo esperado o uso de uma linguagem codificada para passar mensagens com cariz violento ou preconceituoso, sem que os adultos percebam
- Público - Edição Lisboa
- Psicóloga clínica
Foi produzida em Inglaterra, mas poderia ter sido em Portugal. O enredo seria o mesmo. A minissérie Adolescência retrata uma família destroçada por um crime cometido por um franzino rapaz de 13 anos, Jamie, seguido da descoberta pelos pais de que várias coisas falharam na relação entre eles e na forma como educaram o filho. A série aborda temas muito atuais, como os comportamentos de agressividade alimentados por alguns grupos presentes nas redes sociais, a adolescência dentro do quarto (com excesso de Internet), a ausência de supervisão pelos pais daquilo a que o filho tem acesso, os incels (homens involuntariamente celibatários) e o desprezo em relação às mulheres — misoginia. A escola, os seus agentes e as dinâmicas entre eles, naquele caso, caótica, complementa a trama e mostra um lado dos jovens e dos professores que muitos pais desconhecem.
Jamie foi retratado como inseguro, isolado e com problemas de auto-estima e auto-imagem. Achava-se feio, donde, as raparigas não gostavam dele. A puberdade despertou o interesse em relacionamentos amorosos, mas as mensagens que recebia dos grupos que frequentava deixavam-no sem esperança de conquistar alguém porque segundo os incels, as mulheres são cruéis e nunca se irão interessar por um rapaz fisicamente desinteressante. Acrescentamos a este perfil uma escola que apresenta um ambiente de grande confusão e irritabilidade geral, em parte pelo impacto do crime, mas também pelo descontentamento dos jovens e pela fragilidade da figura do professor perante os problemas recorrentes de indisciplina e desafio dos alunos.
Tratando-se de uma fase de construção da autonomia, de um sentido de identidade e da integração em grupos, a adolescência não tem de ser um período difícil. É certo que alguns jovens, por diferentes motivos, seguem um percurso de inadaptação, porém, estão longe de ser a maioria. Há factores que os podem proteger, como a família e um vínculo seguro com os pais, a inserção numa rede funcional de amigos, a criação de um sentido de pertença à escola e a transmissão de segurança naquele espaço.
Aquilo que é retratado na série sobre o impacto do livre e excessivo acesso à Internet pelos jovens, sem preparação e sem supervisão, não é novo. Os perigos que as crianças e os jovens podem encontrar cada vez mais cedo nos ecrãs, quando não são ensinados pelos adultos de referência a navegar em segurança, têm sido divulgados: pornografia, violência, criminalidade sexual, extremismo e maus exemplos de masculinidade.
O que parece ter alimentado os receios e as dúvidas de alguns pais que viram a série refere-se ao retrato da vivência de um jovem inserido numa família aparentemente funcional, sem fatores de risco como a pobreza, o uso de substâncias ilícitas, etc., mas que se revelou problemático ao ponto de assassinar uma colega.
Na verdade, aquela família é parecida com as nossas, onde os pais passam o dia no trabalho e noutros afazeres para suportar os cuidados básicos dos filhos e que pensavam estar a fazer o melhor. Só quando confrontados com a tragédia é que perceberam o fosso relacional existente entre eles e o filho. Aqueles pais perceberam da pior forma que o filho tinha uma vida na Internet ligada a grupos com ideias misóginas e violentas, que eles desconheciam, mas também que as trocas de mensagens em grupos de jovens próximos eram repletas de críticas, bullying e conteúdos sexualizados com recurso aos emojis.
É esperado que os adolescentes tenham uma gíria própria, que faz parte da sua identidade de grupo, não sendo, no entanto, esperado o uso de uma linguagem codificada para passar mensagens com cariz violento ou preconceituoso, sem que os adultos percebam.
A culpa mostra-se latente nos pais quando reconhecem que deixavam o filho muito tempo no quarto com acesso à Internet, inclusive de madrugada, e por não terem percebido o que se passava dado estarem envolvidos nas suas vidas.
É natural que os pais que viram e sentiram a série como um alerta perguntem o que podem fazer para evitar que algo semelhante aconteça aos filhos, inclusive, se estão a ser bons pais. No que toca à relação entre os pais e os filhos, a proximidade e a cumplicidade serve de mediador para o ajustamento dos últimos. Na série, a ausência destes dois fatores é retratada tanto entre os pais e Jamie como entre o inspector e o filho, cuja relação mostrou-se marcada pelo pouco à vontade de parte a parte e pela assunção do pai de que quem faz de mazona é a mãe, sendo ele o bonzinho que acata os pedidos do filho. Mas não é assim que se cria proximidade.
Importa relembrar o que está comprovado pela literatura: a qualidade da vinculação com os pais tem um papel mediador no ajustamento dos filhos. Uma vinculação segura com as figuras principais, baseada no estabelecimento de uma relação de confiança, segurança, responsividade e proximidade emocional, permite que o indivíduo desenvolva representações positivas de si e dos outros, além de um sentido de autoconfiança e independência observável quer na adolescência, quer na vida adulta. Não vimos isto na relação entre o Jamie e os pais.
Sem alarmismos, devemos olhar para esta série como uma chamada de atenção e investir a sério na relação com os filhos e na redução do acesso à Internet sem supervisão nem preparação. As crianças e adolescentes com acesso a conteúdos desadequados podem acabar por interiorizar e identificar-se com ideias e grupos radicais que contribuem para a disfuncionalidade.
É um facto que os pais não conseguem controlar tudo e que o excesso de controlo também não é saudável. Além disso, a Internet deve ser vista como uma mais-valia, não como um perigo. O melhor é preparar os jovens através da educação para o uso das tecnologias. Dado que muitas crianças e adolescentes têm demonstrado dificuldade em termos de regulação emocional, bem-estar psicológico e satisfação com a vida, o que significa que é importante atuar nestas faixas etárias para prevenir problemas futuros. Importa ajudá-los a reconhecer e a expressar emoções de forma adequada, procurando reforçar a educação emocional e também socorrer-se da linguagem emocional para criar proximidade. A regulação emocional é uma variável associada ao bem-estar e a neurociência tem permitido o conhecimento das conexões e circuitos neurobiológicos associados às emoções. A supressão emocional ou o evitamento não ajuda a processar nem a gerir as próprias emoções e as dos outros.
A comunidade, os pais e a escola devem promover o diálogo aberto à volta da masculinidade tóxica e contrariar ideias que de facto derivam do sistema patriarcal onde estamos inseridos, mas que são redutoras e diminuem as mulheres ao defenderem que o homem representa a autoridade e deve comportar-se com agressividade, ser provedor e corajoso, sem mostrar emoções, enquanto a mulher deve ser submissa.
Os discursos que objectificam sexualmente as mulheres, ou racistas, ou misóginos também devem ser desconstruídos.
Importa também quebrar com a imposição social de que a mulher é a única cuidadora e responsável pelos atos dos filhos e partilhar mais a responsabilidade e envolvimento afetivo de ambos os pais.
Muitos pais querem fazer melhor. Empenham-se e investem na proximidade, no afeto, na diversão em conjunto pois a cumplicidade constrói-se no dia-a-dia. Não deixem que a falta de tempo os afaste dos vossos filhos. Retirem o jovem que está sempre fechado no quarto, proponham-lhe atividades em conjunto de acordo com os gostos de todos e apostem na prevenção.
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