O 25 de Abril dos livros ainda está por acontecer: só faltas tu
- Público - Fugas
- Miguel Esteves Cardoso
Uma das grandes liberdades que o 25 de Abril nos trouxe — e que depois custou muita política, muito trabalho e muito dinheiro a pôr de pé — foi a liberdade de ler.
Mas não há liberdade de ler sem livros. E não pode haver livros só para os ricos e para os estudiosos: tem de haver livros para todos.
É por isso que as bibliotecas públicas são uma das grandes conquistas de Abril.
Sempre que vou a uma biblioteca pública à procura de livros, AEco encantado com o que encontro.
Encontro sempre outros livros que só se podem encontrar AEsicamente, através do acaso alladiniano das estantes.
É embriagante poder levar livros para casa, sem pressões, sem olhares, sem a culpabilidade de não comprar.
Numa biblioteca pública, o leitor é o convidado. Nos tempos que correm, quase que diria o herói.
Para se manterem, para poder reivindicar as verbas de que precisam, as bibliotecas precisam de leitores. E tratam-nos nas palminhas.
Nunca conheci um bibliotecário de que não gostasse. Ajudaram-me tanto na universidade que até pensei em tirar o mesmo curso.
Aqui em Portugal, em 2025, os bibliotecários são os maiores amigos dos leitores, dos livros, e da leitura.
São eles que nos emparelham com os livros que mais se adequam à nossa individualidade.
Um bom conselho, que funciona mesmo e que é justíssimo, é este: leve uma maçã para oferecer ao bibliotecário que costuma ajudá-lo.
E, já agora, outro, para o país inteiro. Como ginástica mental, ou exercício de saúde intelectual, tire duas horas por semana para estar numa biblioteca pública.
Caia de pára-quedas. Leve o telemóvel, mas não o use senão como coadjuvante.
Passeie pelas estantes à procura de um livro que lhe interesse.
Abra-o e dê uma espreitadela. Se não o prende, siga caminho.
O objectivo não é encontrar um livro. É passear entre os livros. É ser rico ao ponto de ter tantos livros que só pode passar dois ou três minutos com cada um.
As livrarias intimidam, porque existe a expectativa de compra. Se não gastar dinheiro está a desiludir quem lá trabalha.
Nas bibliotecas é precisamente o contrário: estão trágica mas deliciosamente vazias e, por conseguinte, a nossa presença é desejada.
Somos nós que estamos a fazer um favor à biblioteca.
Numa biblioteca, a abundância e a variedade de livros é que é a riqueza. Não é para ler que lá vamos: é para ver o que há, é para petiscar, é para escolher.
Cada vez que saímos de lá, podemos trazer os braços cheios de livros. Não para ler, note-se, porque não gastámos um cêntimo e logo não temos nada para amortizar, mas para catrapiscar.
Já em casa, espreitamos os livros que trouxemos e, pimba, arrependemo-nos. Mas não faz mal. Devolvem-se. Trocam-se. E AEcam lá, prontos para serem catrapiscados por outros. E trazemos outros.
É esta a liberdade de ler: ler sem pensar em dinheiro, ler sem pensar no dever, ler sem pensar em mais nada senão no prazer.
Na gastronomia, os livros bons são muito raros e os muito bons contam-se pelos dedos.
Comprá-los é asneira, mesmo tendo dinheiro para arder, porque a desilusão e o desperdício amargam sempre, pela frustração das esperanças do leitor.
No entanto, os livros maus têm sempre uma coisa que se aproveite, nem que seja como estímulo de ideias.
Traga para casa todos os livros que identiAEcar como potencialmente úteis, na acepção mais modesta: o de conterem uma só coisa estimulante.
Numa biblioteca, a abundância e a variedade de livros é que é a riqueza. Não é para ler que lá vamos: é para ver o que há, é para petiscar, é para escolher
Esforce-se por não procurar nada. Sobretudo, não procure receitas. Não seja utilitário: seja curioso, seja prazeirento, fútil, frívolo, egoísta, despreocupado.
Aprenda a folhear. Folhear é tão importante como ler. O mundo dos livros não se divide entre os que se leram e os que não se leram.
Entre o não ler e o ler há todo um jardim imenso de folhear, de ir ao índice, de abrir ao calhas para ler um parágrafo, de estudar as fotograAEas, e de apreciar a própria publicação.
As bibliotecas deixam-nos ser quem somos. Não há professores nem papás. Ninguém quer saber em que livros pegamos.
As condições da liberdade podem estar reunidas — até com perfeição — mas, para haver liberdade, é preciso que seja o indivíduo a dar o primeiro passo para ser livre.
Visite uma biblioteca pública, inscreva-se e vicie-se — e verá que nunca mais olha para trás.
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