A imprescindível aprendizagem da solidão
Urge alterar a visão negativa que temos dos chamados tempos “mortos” ou dos momentos de alguma natural solidão. Estes desempenham um papel relevante para ajudar “a crescer, a pensar e a refletir
- Público - Edição Lisboa
- Professora do 1.º Ciclo
Num contexto social em que as crianças são altamente investidas, é muito valorizado o acompanhamento constante dos mais novos, exercido através de uma supervisão intensiva por parte dos adultos. Os pais procuram que os filhos estejam permanentemente acompanhados, quer para ocupar de forma considerada produtiva o tempo da criança, quer para potencializar o seu desenvolvimento cognitivo ou, ainda, para controlar a exposição ao risco. Mas não só. Existe outra ordem de razões para esta supervisão intensiva das crianças. Esta prende-se com o receio de que se sintam sozinhas ou de que se aborreçam.
Nesta sociedade caraterizada pelo excesso de positividade, a presença é altamente valorizada, ao invés da solidão, considerada como algo de negativo, que deve ser combatido a todo o custo, com companhia constante. Para mais, com a diminuição da taxa de natalidade, há muitas crianças que são filhas únicas, pelo que em casa só têm a possibilidade de interagir com os adultos, que as habituam à sua presença permanente, ou quase permanente.
Acostumadas a este modelo de relação, as crianças cedo se tornam dependentes não só da presença como da interação constante com os adultos. São disto exemplo as crianças que não conseguem estar sozinhas — nem que seja apenas por breves momentos — e ainda menos entreter-se com autonomia. Com o passar do tempo, este modelo que foi criado pelos adultos acaba por se tornar invasivo para os seus próprios criadores, que veem o seu tempo sugado por uma exigência excessiva de atenção por parte das crianças.
Apesar deste modelo se tornar invasivo para os próprios adultos que o criaram, poderia pensar-se que, pelo menos para as crianças, seria positivo, na medida em que benefif ciariam de mais atenção. Mas este excesso de atenção, de supervisão, de orientação e de companhia também poderá tornar-se negativo para os mais novos, que não só se tornam demasiado dependentes, como se veem impedidos de desenvolver a autonomia, o sentido de responsabilidade e a saudável capacidade de estarem sós.
Para o pedopsiquiatra Pedro Strecht, não restam dúvidas nesta matéria. Tal como alerta na obra Pais suficientemente bons, “a incapacidade de estar só é um mal psíquico dos tempos atuais”. Esta inaptidão para estar só deve-se, na sua perspetiva, a um excesso de ligação, a um contacto permanente que permite pouco espaço pessoal, que satura com facilidade diversas relações e fragiliza processos de autonomia e de solidez emocional. As consequências estão à vista: “Demasiada ligação, ocupação e proteção desviam os mais novos de desenvolverem de forma lógica os seus padrões de autonomia e responsabilidade”.
Por contraposição a esta excessiva ligação, ocupação e proteção, este pedopsiquiatra defende a saudável capacidade de estar só: “Em tempos em que a aparente necessidade de estar sempre em ligação com tudo e todos, sobretudo através das redes sociais, e em que muitos parecem não saber como lidar com o silêncio ou com a mera ausência de estímulo externo, reaprender a desenvolver esta saudável capacidade surge como uma ideia importante a recuperar”.
Esta saudável capacidade de estar só favorece a possibilidade de desenvolver aquilo que o pedopsiquiatra Donald Winnicott denominou como integração emocional. É precisamente esta capacidade de integração que permite guardar e digerir as experiências, de modo a que estas façam sentido e adquiram espaço na memória de uma construção emocional individual e coletiva.
O movimento de introspeção, que se atinge fundamentalmente quando estamos sós, é responsável pelo desenvolvimento da capacidade de pensar e de criar. Construído a partir da infância, é este movimento que, nas palavras de Pedro Strecht, nos desafia a expandir “a riqueza do nosso diálogo interno, aquele que nos põe a falar, a pensar e a imaginar connosco próprios e com os outros, sem que a sua presença física seja necessária”.
É precisamente por esse motivo que urge alterar a visão negativa que temos dos chamados tempos “mortos” ou dos momentos de alguma natural solidão. Estes desempenham um papel relevante para ajudar “a crescer, a pensar e a ref etir e, sobretudo, a integrar toda uma série de experiências vividas”, tal como salienta este autor.
De acordo com esta visão, estar sempre em cima dos filhos, não lhes dando a possibilidade de estarem sós, pode implicar uma dificuldade posterior em cuidarem de si mesmos, o risco de manutenção de ligações de total dependência dos outros e uma marcada sensação de insatisfação, que nada nem ninguém parece capaz de preencher.
Para o prevenir, é necessário dar tempo e espaço aos mais novos para que tenham oportunidade de estarem sós. É esta imprescindível aprendizagem da solidão que lhes vai permitir integrar as experiências emocionais, expandir o seu mundo interior, fortalecer a autonomia pessoal, desenvolver a imaginação e aprofundar o pensamento independente.
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