domingo, 9 de fevereiro de 2025

Isabel Figueiredo in O Expresso de 07-02-25 - E agora a reforma!?

 



Não existe um motivo que me leve a sonhar com a reforma. Pelo contrário, nesta altura da vida, repudio a ideia

06 fevereiro 2025 22:57

Respondi, “Eu, cá, quando me reformar...” e parei. Tinha iniciado uma frase cuja conclusão não corresponderia ao que realmente penso. Quando me reformar o quê? Fiquei a pensar. Apanhada pela súbita impossibilidade de concretizar o enunciado.

Explico: quando me reformar vou viajar? Trabalharei no jardim e na horta sem culpa do que tenho por fazer em casa? Passarei o dia a ler e ver filmes? Vou fazer outros cursos? Esta última hipótese agradou-me, mas logo me lembrei que comprei um curso de poda de árvores há duas semanas, mas ainda não tive tempo para assistir às aulas e ler os materiais.

Não existe um motivo que me leve a sonhar com a reforma. Pelo contrário, nesta altura da vida, repudio a ideia. Muitos terão vontade de me responder duramente, ao ler estas palavras. Mas falo por mim, apenas. Não é ideologia liberal. É liberdade de pensamento e de expressão. Todos temos direito à atribuição de uma pensão justa, e à desvinculação de um horário e de preocupações laborais mais cedo do que consigna a lei. Mas como é possível pensar em reforma quando o que somos e o que fazemos está ligado de forma tão umbilical? Se fizer uma grande viagem de lazer, será impossível não escrever sobre o que vivi. Se ler um bom livro ou vir um bom filme, é impossível não estabelecer relações com o que escrevi e quero escrever. A vida inspira-me. A obra alheia inspira-me. Tudo em mim vai acabar na minha profissão ou nas tarefas do quintal e no jardim. Essas, fisicamente pesadas. Muitas pessoas que se dedicam ao trabalho cultural, artístico têm esta reação: “Ganho pouco, estou cansado, mas quero continuar.”

Não o diria nos tempos em que lecionava. Mas a minha vida deu uma guinada inesperada. Já não acordo com vontade de fugir ao trabalho e à vida. É exatamente o contrário. Quando chegar a idade da reforma, quero continuar a fazer exatamente isto: escrever crónicas, escrever mais isto e também aquilo.

O trabalho, tal como o concebo, deve ser um sentido para a vida, não para ganhar a vida. As senhoras reformadas, na minha aldeia alentejana, fazem tapetes para estarem entretidas

Para que este efeito se dê, precisaremos de juntar alguns fatores. Um: gostar muito do que fazemos; dois: o trabalho não pesar excessivamente em relação ao conjunto de interesses da nossa vida; três: tornar inadmissível o abuso das nossas capacidades; quatro: denunciar as usuais tentativas de humilhação ou desvalor do trabalho. São inconcebíveis. A maioria dos trabalhadores, em todos os sectores, desenvolve as suas atividades sob as ameaças diretas ou indiretas que acabei de referir. Sei como o fazem em escolas e em jornais. Sei quem são as vítimas preferidas. Conheço o agressor-tipo.

O trabalho é, em muitos casos, um longo caminho para o Calvário, porque se tem filhos para criar, contas de luz, do supermercado e uma casa para pagar, fora o resto. A isto as pessoas chamam vida. Eu chamo cativeiro com trabalhos forçados. Estes cidadãos anseiam justamente pela reforma.

Marx defendia, e bem, que o salário é a retribuição suficiente para nos mantermos em condições de trabalhar a fim de nos mantermos. É neste contexto que se enquadra o “eu, quando me reformar, isto e aquilo” que nos é tão familiar.

É verdade que gostaria de conseguir visitar meia dúzia de países, sem ser a trabalho. Também gostaria de só apanhar sol enquanto bebo um copo de água. Mas quanto tempo de viagem e sol suportaria? Tenho trabalhado muito e preciso de descanso, consciência que desencadeou este texto. A semana passada revelei ao meu editor: “Este ano escrevo o livro x e depois tiro um ano de sabática só para ler e descansar.” Ele sorriu, como sorri sempre que digo as minhas infantilidades e inconveniências e respondeu: “Acho que faz muito bem.” Disse-o porque me conhece e está convencido de que se me deixar à solta, sem programação, a minha mente rapidamente encontra um “projeto muito engraçado”. Desgraço-me sozinha. No dia seguinte, entrei numa casa bonita, contemplei a decoração, e disse algo que nunca tinha pensado até aquele momento: “Esta casa dava um programa de televisão. Estou a imaginar o seguinte...” E descrevi o programa que a minha mente estava a ver. Ri-me, os outros riram-se.

O trabalho, tal como o concebo, deve ser um sentido para a vida, não para ganhar a vida. As senhoras reformadas, na minha aldeia alentejana, fazem tapetes para estarem entretidas. Algumas estão com 90 anos. Não precisam do que fazem, mas acordam todos os dias para os seus tapetes. Assim que o sol aquece, sentam-se à porta, no seu banquinho de madeira e palha, desenrolam a tela, que logo lhes cobre as pernas e se estende pelo chão. Pegam na cesta das lãs, nos esquemas, e ali passam o dia, parando para almoçar e ir ao ATL contar histórias antigas. Estas senhoras tiveram trabalhos duros. No campo ou na cidade. O que fazem depois de se reformar? Trabalham. Ao seu ritmo, quando e porque querem. Todos estes tapetes são vendidos nas lojas de artesanato em Arraiolos. Fazer tapetes ao sol, conversando com quem passa parece-me uma reforma tão boa como escrever a vida inteira.

Isabel Figueiredo in O Expresso de 07-02-25

 

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