Não existe um
motivo que me leve a sonhar com a reforma. Pelo contrário, nesta altura da
vida, repudio a ideia
06
fevereiro 2025 22:57
Respondi, “Eu, cá, quando me reformar...” e parei.
Tinha iniciado uma frase cuja conclusão não corresponderia ao que realmente
penso. Quando me reformar o quê? Fiquei a pensar. Apanhada pela súbita
impossibilidade de concretizar o enunciado.
Explico: quando me reformar vou
viajar? Trabalharei no jardim e na horta sem culpa do que tenho por fazer em
casa? Passarei o dia a ler e ver filmes? Vou fazer outros cursos? Esta última
hipótese agradou-me, mas logo me lembrei que comprei um curso de poda de
árvores há duas semanas, mas ainda não tive tempo para assistir às aulas e ler
os materiais.
Não existe um motivo que me leve
a sonhar com a reforma. Pelo contrário, nesta altura da vida, repudio a ideia.
Muitos terão vontade de me responder duramente, ao ler estas palavras. Mas falo
por mim, apenas. Não é ideologia liberal. É liberdade de pensamento e de
expressão. Todos temos direito à atribuição de uma pensão justa, e à
desvinculação de um horário e de preocupações laborais mais cedo do que
consigna a lei. Mas como é possível pensar em reforma quando o que somos e o
que fazemos está ligado de forma tão umbilical? Se fizer uma grande viagem de
lazer, será impossível não escrever sobre o que vivi. Se ler um bom livro ou
vir um bom filme, é impossível não estabelecer relações com o que escrevi e
quero escrever. A vida inspira-me. A obra alheia inspira-me. Tudo em mim vai
acabar na minha profissão ou nas tarefas do quintal e no jardim. Essas,
fisicamente pesadas. Muitas pessoas que se dedicam ao trabalho cultural,
artístico têm esta reação: “Ganho pouco, estou cansado, mas quero continuar.”
Não o diria nos tempos em que
lecionava. Mas a minha vida deu uma guinada inesperada. Já não acordo com
vontade de fugir ao trabalho e à vida. É exatamente o contrário. Quando chegar
a idade da reforma, quero continuar a fazer exatamente isto: escrever crónicas,
escrever mais isto e também aquilo.
O trabalho, tal como
o concebo, deve ser um sentido para a vida, não para ganhar a vida. As senhoras
reformadas, na minha aldeia alentejana, fazem tapetes para estarem entretidas
Para que este efeito se dê,
precisaremos de juntar alguns fatores. Um: gostar muito do que fazemos; dois: o
trabalho não pesar excessivamente em relação ao conjunto de interesses da nossa
vida; três: tornar inadmissível o abuso das nossas capacidades; quatro:
denunciar as usuais tentativas de humilhação ou desvalor do trabalho. São
inconcebíveis. A maioria dos trabalhadores, em todos os sectores, desenvolve as
suas atividades sob as ameaças diretas ou indiretas que acabei de referir. Sei
como o fazem em escolas e em jornais. Sei quem são as vítimas preferidas.
Conheço o agressor-tipo.
O trabalho é, em muitos casos, um
longo caminho para o Calvário, porque se tem filhos para criar, contas de luz,
do supermercado e uma casa para pagar, fora o resto. A isto as pessoas chamam
vida. Eu chamo cativeiro com trabalhos forçados. Estes cidadãos anseiam
justamente pela reforma.
Marx defendia, e bem, que o
salário é a retribuição suficiente para nos mantermos em condições de trabalhar
a fim de nos mantermos. É neste contexto que se enquadra o “eu, quando me
reformar, isto e aquilo” que nos é tão familiar.
É verdade que gostaria de
conseguir visitar meia dúzia de países, sem ser a trabalho. Também gostaria de
só apanhar sol enquanto bebo um copo de água. Mas quanto tempo de viagem e sol
suportaria? Tenho trabalhado muito e preciso de descanso, consciência que
desencadeou este texto. A semana passada revelei ao meu editor: “Este ano
escrevo o livro x e depois tiro um ano de sabática só para ler e descansar.”
Ele sorriu, como sorri sempre que digo as minhas infantilidades e
inconveniências e respondeu: “Acho que faz muito bem.” Disse-o porque me
conhece e está convencido de que se me deixar à solta, sem programação, a minha
mente rapidamente encontra um “projeto muito engraçado”. Desgraço-me sozinha.
No dia seguinte, entrei numa casa bonita, contemplei a decoração, e disse algo
que nunca tinha pensado até aquele momento: “Esta casa dava um programa de
televisão. Estou a imaginar o seguinte...” E descrevi o programa que a minha
mente estava a ver. Ri-me, os outros riram-se.
O
trabalho, tal como o concebo, deve ser um sentido para a vida, não para ganhar
a vida. As senhoras reformadas, na minha aldeia alentejana, fazem tapetes para
estarem entretidas. Algumas estão com 90 anos. Não precisam do que fazem, mas
acordam todos os dias para os seus tapetes. Assim que o sol aquece, sentam-se à
porta, no seu banquinho de madeira e palha, desenrolam a tela, que logo lhes
cobre as pernas e se estende pelo chão. Pegam na cesta das lãs, nos esquemas, e
ali passam o dia, parando para almoçar e ir ao ATL contar histórias antigas.
Estas senhoras tiveram trabalhos duros. No campo ou na cidade. O que fazem
depois de se reformar? Trabalham. Ao seu ritmo, quando e porque querem. Todos
estes tapetes são vendidos nas lojas de artesanato em Arraiolos. Fazer tapetes
ao sol, conversando com quem passa parece-me uma reforma tão boa como escrever
a vida inteira.
Isabel Figueiredo in O Expresso de 07-02-25
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