Saudades fresquinhas
- Público - Edição Lisboa
- Miguel Esteves Cardoso
O passado está sempre a fazer-nos um favor: o favor de se esconder. Se cada dia que vivemos tinha indiscutivelmente 24 horas — e se uma hora já de si é muito tempo —, que faríamos nós com o peso dessas memórias? Como conseguiríamos dar um passo, se a cordilheira de montanhas de tantos momentinhos quisesse encavalitar-se nas nossas costas, doida para seguir caminho connosco?
Dizem que só usamos um terço do nosso cérebro. Acho que sei porquê: os outros dois terços estão ocupados com limpezas.
Os outros dois terços encarregam-se do esquecimento. Na verdade, os outros dois terços não são outros, coisa nenhuma. O terço que resta é que é outro. Os dois terços é que fazem o trabalho principal do cérebro, que é esquecer. E sonhar.
Esquecer é limpar. Esquecer é arrumar. Esquecer é arranjar espaço. É preciso espaço para as visitas: as visitas da imaginação e das dúvidas, as visitas da novidade e da frescura.
Lembrar é um grande compromisso. Os grandes horrores já nos esforçamos por esquecer. Mas também temos de nos esquecer da quantidade imensa de alegrias medíocres e de chatices um bocadinho de nada divertidas com que, para não morrermos de tédio, conseguimos encher as nossas vidas.
Lembrar é uma honra. Com um passado devidamente esquecido e desprezado, só aparecem as memórias curiosas. Acordo e pergunto: que memória vem ter comigo hoje? De onde veio? Ou, mais importante: o que é que vem cá fazer? Como é que se está a dar com o presente circundante? Está a integrar-se? Ou está a tentar arranjar briga?
Se a cabecinha estiver a esquecer como deve ser — a esconder bem as tralhas todas que foi acumulando só por força de estarmos vivos —, o outro terço poderá ocupar-se com a escolha livre de memórias interessantes, de memórias úteis, que nos ajudam.
Como chegaste aqui, memória, vinda sabe-se lá de onde, com o teu atrevimento de te candidatares a saudade? Não sabemos como nem porquê. Ainda bem. Só sabemos que gostou de ter o caminho desimpedido.
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